Entristece-me sobremaneira ver nos brasileiros, em quem sempre reconheci uma bondade, candura e generosidade profundamente idiomáticas, um tão veloz extremar de conduta, um tão óbvio degenerar de ética e de moral. Falo, obviamente, do que o resto do mundo tem assistido por ocasião das eleições presidenciais no Brasil, onde a tão bem enraizada ignorância e o ódio de classes têm provado ser uma combinação explosiva. Capaz de, inclusivamente, vir a eleger um fascista nada mascarado, com o fantasma da ditadura militar ainda tão recente.
Mas o problema não são os brasileiros. Por todo o lado vimos assistindo a um despontar de cada vez mais movimentos destes, em que uma figura obviamente odiosa é elevada a um pedestal a que não pertence, apenas e só por reduzir o seu discurso ao mais básico e primitivo na prossecução de soluções simples para problemas graves, já endémicos nas sociedades democráticas actuais. Por esse motivo, e porque somos todos vizinhos num mundo comum, em que as políticas duma nação afectam as restantes, recuso-me a aceitar que me retirem o direito a opinar sobre as eleições doutra nação. Falamos dumas eleições que podem decidir o futuro da floresta da Amazónia, que é só o pulmão do nosso planeta inteiro, por exemplo. Por isso não, não somos ilhas isoladas no espaço e no tempo, e temos um dever cívico de actuar sempre que a liberdade e o bem-estar comum está em risco. Vamos por partes.
Uma coisa é não gostar, não concordar, não aceitar uma determinada forma de actuação política ou até uma figura política. Outra, bem diferente é odiar. E não tenhamos ilusões, aquilo a que assistimos no Brasil é ódio, apenas e só. Nos tempos em que vivemos, a política gera ódios, e pior, fomenta-os. E desse ódio surgem figuras odiosas, como Bolsonaro, mas também como Trump, Erdogan, Orbán, Salvini, Le Pen e tantos outros (ou os Andrés Ventura cá do burgo). Aceitar que a política se transforme em movimento gerador de ódio é aceitar placidamente o fim das sociedades democráticas. Daí que me pareça imperativo perceber de onde é que ele surge.
Neste caso concreto, interessou-me mais perceber de onde vem este ódio ao PT e a Lula da Silva, do que propriamente entender de onde vem o apoio a Bolsonaro. Depois de afastado o intenso ruído que circunda esta questão, é possível discernir dois grandes motivos, válidos diga-se, para compreender um Brasil disposto a eleger um monstro para evitar a continuidade do PT no poder. Por um lado, a partir do momento que se assume a existência de um suposto plano de perpetuação no poder (se nos dispusermos a aceitar isso com essa nomenclatura, algo que eu pessoalmente não aceito), os brasileiros, vizinhos duma Venezuela bem próxima, tendem a retrair-se bastante. Particularmente os que pertencem a uma classe média alta, ou às elites (ainda) feudais do país. Não importa em que contexto é que ele surge, não importa porque surge e o que pretende combater, o que importa é que é vermelho. Mas ainda há um outro motivo: dezenas de milhões de reais desviados de dinheiro de todos para os bolsos de alguns. A corrupção, esse bicho-papão que parece afectar mais o PT do que qualquer outro partido.
A esquerda tem de ser impoluta, já todos o sabemos. Não pode acumular bens ou riqueza, não pode recorrer a serviços privados, enfim, devem encarnar aquela imagem bíblica do profeta abnegado que vive em privação mas que não precisa de mais nada a não ser da força dos seus ideais. (Curioso que não se peça o mesmo à Igreja, não é?) Poupem-me. A esquerda não é, nunca foi, nem há-de ser impoluta. E não é por isso que perde força, não é por isso que está errada ou que é hipócrita. Sim, há corrupção no PT, isso são factos. Mas ela não é exclusiva deste partido!
Neste momento, falar de corrupção no Brasil é falar no PT, como se este partido fomentasse a corrupção. Nada mais falso! Há mensalão, há propina, mas basta olhar a lista de indiciados no processo Lava Jato, por exemplo, para perceber em que lado mora a maioria. Basta perceber o processo do impeachment, em que Dilma foi destituída por realizar cativações (algo tão comum e praticado em absolutamente todos os governos), numa votação completamente odiosa (e vendo os vídeos cedo se percebe que essa destituição nada teve que ver com o desempenho das suas funções), para ser substituída por um Temer, implicado até ao pescoço nesse mega processo de corrupção, com a certeza da condenação. Um Temer que graças a esta manobra conseguiu a imunidade, evitando a condenação, um Temer que disse à boca cheia que em 2 anos o Brasil regrediu 20 anos, tudo graças às suas políticas. E quem destruiu o Brasil foi o PT? Só se acreditarmos nas “gordas”. Não é difícil estabelecer a associação entre o trajecto profundamente auto-destrutivo trilhado pela governação de Temer e o crescimento exponencial deste ódio tão intenso. Pessoalmente, só consigo compreender esta retórica à luz de uma intensa campanha de diabolização perpetrada ao longo da última década, com particular incidência em Lula da Silva. Mas importa perceber que o PT não é Lula; Lula é que é PT! Não se pode permitir que se destrua um partido desta forma, apenas por odiar uma das suas figuras (mesmo que seja a mais relevante). Permiti-lo é desferir um golpe mortal na Democracia. Pior, só mesmo votar Bolsonaro na 2ª ronda das eleições presidenciais brasileiras.
14-10-18
Perdoa-lhes a hipocrisia, Senhor, que não sabem o que fazem!
Uma semana após a celebração da Páscoa católica, eu ainda permaneço enredada nos seus meandros. Não sou crente, em nada, diga-se. No entanto, não deixa de ser um exercício muito apelativo observar os efeitos que estas alturas do calendário religioso provocam nas pessoas. Para muitos, foram duros os dias de abstinência da Quaresma. Purgar a alma da maldade, da mesquinhez e do escárnio não pode ser tarefa fácil. Com a chegada da Páscoa, ressuscita um espírito renovado para enfrentar o mesmo quotidiano de sempre. Abre-se a porta para nos tornarmos a nossa melhor versão, e multiplicam-se os discursos de incentivo e de auto-aperfeiçoamento. Só que sabemos que não é bem assim, pois não?
Em primeiro lugar, a apropriação da ressurreição como símbolo, orientando-o para um possível renascimento, chateia-me um bocado. Ressuscitar implica morrer, certo? Renascer também? É que para mim, não: a ideia de que a nossa versão actual, seja ela qual for, deve morrer para que uma nova e espantosa versão de nós mesmos possa florir, é coisa demasiado utópica para ser exequível. E por outro lado, também não entendo em que é que seria útil: não faz mais sentido ser quem (e o que) somos, procurando potenciar umas coisas e atenuar outras, por oposição a um conceito de total reconversão numa “nova” pessoa? Se calhar, para amar o próximo precisamos de gostar um bocadinho mais de nós mesmos primeiro, diria eu.
Depois, perceber que as inclementes tentativas de evangelização daquelas pobres almas que se recusam a acreditar em amigos imaginários depois da primeira infância, acontecem por parte de pessoas que, por um lado, apresentam pouco conhecimento acerca sua própria religião e que, por outro, não a praticam no seu quotidiano, já me chateia mais um bocado. Que me importa se aquela pessoa jejuou ou se absteve sei lá eu do quê durante 40 dias, se no seu dia-a-dia continua a cultivar o ódio, a mentira, a injustiça e o egocentrismo? Que me importa se recebe em casa um instrumento de tortura romano como símbolo dum sofrimento redentor, se depois preenche as suas rotinas com a mesma altivez, arrogância e prepotência de sempre? Não reconheço autoridade moral a pessoas que dizem uma coisa e praticam outra no seu quotidiano.
Por fim, quando esses discursos deixam de ser uma manifestação pessoal de fé ou da expressão da liberdade individual de cada um, ainda que tentando doutrinar o outro, e se transformam numa tentativa de instrumentalização da fé dos outros para servir os seus próprios propósitos, já me parece completamente intolerável. A mim, que não sou crente, não me ofendem determinadas atitudes. Mas por empatia para com os muitos católicos com quem convivo nos meus diferentes círculos de amizade, e que respeito, causa-me repúdio ver como se procura usar a religião para manipular ou condicionar a forma de estar (ou de ser) do outro. A religião não é um código de conduta universal. Incorpora uma moral muito circunscrita, e muito particular para cada religião (embora com múltiplos pontos comuns), que só segue quem nela acredita. E não é por isso que o Mundo se divide entre más e boas pessoas consoante a sua fé (ou a sua ausência). Que exista quem, sabendo disto, escolha utilizar a religião como condicionalismo intrapessoal, é errado, ponto.
A fé não é um salvo-conduto. O arrependimento não dá carta branca para cometer determinados erros com impunidade. Não há mea culpa ou terços suficientes que substituam uma real mudança nas acções e nas atitudes. Não há paciência para tanta hipocrisia e tanta beatice. Das duas, uma: ou se refreiam as tentativas de evangelização acerca duma salvação divina (só alcançável com uma qualquer redenção nesta vida terrena), ou então têm que se tornar melhores pessoas antes de pregar. É que assim, é só inautêntico e por isso, descartável. Menos hipocrisia, mais doutrina, e depois falamos.
06-04-18
Penso, logo existo.
Há uns tempos, vi um filme que a dada altura lançava uma questão curiosa: qual é o vírus mais insidioso que a Humanidade conhece? Capaz de invadir as defesas de qualquer organismo, por melhor organizadas que estejam, e capaz de fazer desse organismo seu hospedeiro, alterando a sua matriz original? A resposta é bastante pueril, até. Esse vírus tão letal é algo muito simples: tão-somente uma ideia. “Quando estás protegido por uma ideia, não precisas de mais nada. Podes fazer aquilo que te apetecer.” Isto dizia-me Rui Horta, reputado coreógrafo nacional, há pouco tempo, o que agudizou este sentimento (esta ideia?) que em mim se vem instalando há algum tempo.
De facto, há ideias que protegem. Pode-se tentar justificar com raciocínios intrincados as mais ignóbeis acções, mas quando a ideia que as sustenta é débil, principalmente se movida a emoções mesquinhas como a ganância ou a inveja, todo esse constructo acaba por ruir como castelo de cartas. Por oposição, quando o que instiga a acção é a ideia de um Mundo mais justo e mais igual, mais honesto e mais real, não há vendaval que faça tremer os seus alicerces. As atitudes que se lhe seguem podem ser duras, as decisões podem ser difíceis de tomar, mas o trajecto desenha-se nítido, pronto a ser calcorreado. Podem-no povoar de obstáculos e de provas de força, que a força dessa ideia continuará a impelir inexoravelmente o caminho.
Há ideias que não são mais que preconceitos camuflados. São vozinhas desdenhosas no fundo de cabeças ocas, murmúrios permanentes que lhes compõem a banda sonora dos dias. As ideias que construímos acerca das pessoas podem elevá-las ou destruí-las. Mas existe aqui um fenómeno curioso: pessoas que mereceram a dado momento o nosso especial apreço e estima, podem degenerar em pessoas odiosas. E pessoas a quem nunca concedemos especial atenção, podem revelar-se inacreditáveis. Basta apenas que se instale em nós uma ideia, leve sugestão ou indício do que poderão ser na verdade essas pessoas, que o peso dos dias logo trata de a agigantar, moldando toda uma nova concepção.
A força de uma ideia é uma coisa curiosa. Há ideias megalómanas, inchadas de ambição, e que parecem ter o poder de mover montanhas. Sobrepõem-se ao quotidiano, invadem as horas dos dias, e obliteram quaisquer resquícios das frustrações comuns da rotina. Mas como balão demasiado cheio, chega uma altura em que não aguentam o seu próprio volume, e rebentam (com estouro). Por outro lado, depois há ideias mansas, pequenas e aparentemente inofensivas. Começam com um pergunta a que não se dá grande importância, mas que num curto espaço de tempo começa a latejar mesmo em mentes muito povoadas. E essas são as piores. Porque se vão instalando devagar, vão crescendo mas de forma sustentada, e quando damos por nós já se estabeleceram e não fazem quaisquer tenções de rebentar.
Ideias há que, enraizadas debaixo do peso de gerações inteiras, oprimem e aprisionam. Obrigam-nos a agir de determinada forma, condicionam-nos o comportamento a ponto de já não conseguirmos delimitar bem o que somos nós e o que nos foi imposto. São produto de mentes fechadas e limitadas, e vão cerrando de mansinho todas as portas da nossa liberdade individual: quando damos por nós, somos boneco de um ventríloquo sem rosto, repetindo as mesmas acções dia após dia sem as reconhecer. O respeitinho perante uma sociedade intrinsecamente patriarcal, a subserviência face às hierarquias, a deferência para com os títulos, tudo isso não é real. São apenas ideias inculcadas bem fundo na nossa matriz original, que nos manipulam o comportamento para que aceitemos todos, mais dóceis, o inaceitável.
Mas depois, há ideias que libertam. Que não respeitam as regras a que estamos todos confinados, à procura da utopia. Que rompem aos berros as grilhetas em que aceitamos ser aprisionados. De facto, por mais que nos tentem provar o contrário, as ideias têm um poder curioso. Quando plantadas eficazmente, ganham vida própria, transmutando-se à medida que evoluem. Depois de implantadas, é impossível controlar essas mutações: consoante o hospedeiro, revolvem e reviram, originando acções muitas vezes não antecipadas. Instigam a acção, isso é inegável. Às vezes, basta apenas uma ideia, por mais simples que seja, para alterar o curso da existência de alguém. E por mais que nos digam o contrário, não somos uma ilha. “É preciso sair da ilha para ver a ilha”, já dizia Saramago. Se sairmos de nós próprios, veremos que temos um raio de alcance substancialmente maior do que aquilo em que nos ensinaram a acreditar. E se não nos faltar a coragem, veremos que uma ideia, bem sustentada e justamente difundida, tem sim o poder de mudar o Mundo. A começar pelo de cada um.