Na manhã que sucedeu as eleições legislativas do passado dia 06 de Outubro, a mesma pergunta impunha-se um pouco por todo o espaço mediático: quem venceu as eleições? Terá sido o PS com a sua maioria (des)confortável, diz o consenso na opinião pública. Ou poderá ter sido o BE, que mesmo perdendo votos manteve a sua representatividade na AR e que se assumiu como a nossa 3ª força política? Ou ainda o PAN, que com uma votação mais expressiva ascendeu finalmente à política dos “crescidos” (onde vai ter que finalmente clarificar as suas posições ideológicas)? Quem perdeu parece igualmente ambíguo: terá sido o PSD, com uma minoria confortável para Rui Rio (que conseguiu o incrível feito de não perder por tanto quanto era perspectivado), a CDU, que vê a sua posição crescentemente fragilizada, ou o CDS, que se vaporizou diante dos olhos da sua líder (e que assim finalmente aceitou a evidência da sua saída)?
Outros dirão que o real vencedor foi, na verdade, a nossa democracia, que com a entrada de 3 novos partidos ficou (ainda) mais plural. Não é essa a análise que aqui me traz; confesso que tenho tido alguma dificuldade em ver grandes vitórias nestas eleições, perante o cenário pós-eleitoral a que temos assistido. Os golpes têm sido tantos e sucedem-se a tal ritmo, que se torna difícil acompanhar esta grande encenação que parece dirigir os reais resultados eleitorais. Por onde começar?
Talvez pelo desmantelamento da geringonça: ao contrário daquilo que foi apontado durante a campanha, o grande teatro deu-se agora, nas nossas barbas. No jogo de sombras que vem sendo transpirado para a imprensa pelos diferentes “comentadeiros”, tornou-se óbvio o que a “histórica solução política” proposta por Costa em 2015, alvo de tantos e variados louvores internacionais, não foi; não uma viragem à esquerda, não o desvincular do arco de governação, não uma mudança efectiva na forma de fazer política. Isto não é nada de novo; ainda durante a legislatura que agora findou, muitos foram os sinais e muitos souberam não os ignorar.
Com o comunicado de 10 de Outubro, depois da reunião com as principais associações do patronato, o PS assume finalmente ao lado de quem se posiciona (e não será casual Rio aguardar uma posição mais clara de Costa acerca da solução governativa, para decidir a sua continuidade à frente dos destinos do partido, tal como noticiou o PÚBLICO no passado dia 11); afinal, e depois de esquecidas as virgens ofendidas durante a campanha, PS não quer ser um partido de esquerda. Fico pessoalmente satisfeita: BE, PCP e LIVRE estão assim libertos para se posicionarem mais firmeza e clareza ao longo da próxima legislatura. Se a revisão da legislação laboral profundamente delapidada (pronto, vá, liberalizada, ou antes, flexibilizada, não é assim?) não é uma prioridade de um partido de matriz socialista, para mim está claro ao serviço de quem este se encontra. À esquerda, quem quer ser de esquerda.
Por outro lado, torna-se a cada dia mais nítido que os pilares que sustentam a nossa democracia estão cada vez mais periclitantes. Graças a uma direita com visíveis dificuldades de posicionamento, vemos grassar uma onda populista e demagógica, e uma outra nitidamente racista, xenófoba, preconceituosa e a forçar a fronteira do fascismo. Se por um lado, vemos o movimento neoliberal a conquistar espaço mediático (e assinalo, desde já, a torpe tentativa de tapar o Sol com a peneira – basta ler o programa eleitoral do Iniciativa Liberal para perceber que não falamos com liberais, mas sim com neoliberais), é assustador verificar que a extrema-direita vem paulatinamente conquistando adeptos no nosso Portugal. Se mais provas queríamos de que o nosso sistema político clama por mudanças estruturais, aqui as temos: no Portugal dos dias de hoje, basta lançar meia dúzia de bitaites de café acerca de corrupção e falar ao âmago do preconceito que lateja ainda em muitas alminhas (e ser do Benfica, claro), para conseguir assento parlamentar.
O combate a estes movimentos tem de ser, necessariamente, político: à esquerda cabe a responsabilidade de não deixar resvalar a discussão para o campo da crítica ad hominem, cientes de que também não podem continuar a dar-se ao luxo de recusar o debate e o confronto. Não queremos mártires; a História já nos ensinou o quão perigosos conseguem ser. Mas é preciso chamar os bois pelos nomes: como bem diz Bárbara Reis, extrema-direita não é fascismo, como bem diz Alexandra Lucas Coelho, racismo é crime e como bem diz Rui Tavares, o populismo esconde um supremo desprezo para com o povo. Urge expôr as fragilidades que alicerçam as teses defendidas por estes movimentos: comecemos pela famigerada petição que visa impedir a tomada de posse da deputada eleita pelo LIVRE, subscrita pelas mesmas pessoas que invocam o processo democrático que também elegeu um deputado pelo CHEGA, por exemplo. São estas incoerências e os radicalismos que as fundamentam que temos o dever de trazer para o espaço público: não passarão.
Quem venceu então as eleições? Honestamente, não o sei dizer; se tivesse que apontar de forma inequívoca um grande vencedor, a minha resposta seria o grande capital. O que sei dizer com firme certeza é quem foi o grande derrotado: esse, fomos nós todos (mesmo aquela expressiva maioria da população que não foi votar).
13-10-19
Campanhas, tricas, partidarites e outras maleitas.
Anda por aí mais alguém tão irritado como eu com esta campanha para as eleições legislativas? Haja esperança: felizmente entramos na última semana, só mais uns míseros 5 dias (porque não há qualquer vislumbre ou sussurro de política no dia da reflexão, todos sabemos, ainda para mais este coincide com o feriado da implantação da República, estou seguríssima que política vai ser nem vê-la) e finalmente iremos votar o próximo quadro político que nos irá reger durante os próximos 4 anos. Repararam que não falei em eleger o próximo Governo, não repararam? Já me conhecem e à importância que dou à semântica.
Quando olhamos para aquilo em que se têm convertido as campanhas eleitorais torna-se difícil morder a língua. Já estávamos habituados a comícios exultantes (ver num deles Assunção Cristas a dizer que quer “esta ciganada toda a votar CDS” é delicioso, confesso, assim como são bastante divertidos os já reconhecidos saltinhos do actual Primeiro-Ministro), a debates onde discutir política parece extraordinariamente difícil, e ao óbvio manietar da comunicação social em perseguição das falsas polémicas destinadas a obliterar o trabalho desenvolvido ao longo de 4 anos (o bom e o mau). Agora, a acrescentar a tudo isto, temos os dirigentes dos principais partidos em programas de humor, com fotos de caldeiras, festinhas a cães e piadolas mal conseguidas? Talvez visando aproximar as pessoas da política, de repente a esta converte-se numa feira das vaidades (perdoem-me lá a veia vitoriana), quase um circo em que poucos são os que se recusam a ser palhaços. Eu serei talvez bota-de-elástico, mas recuso-me a aceitar que o poder político se demita da sua responsabilidade em informar e sobretudo formar as populações. Se as pessoas não compreendem o discurso político, há que lhes explicar; o que não é o mesmo que reduzir esse discurso à boçalidade para que o entendam! Urge exigir do poder político que deixe de fazer de nós burros e que encare esta responsabilidade máxima – a de criar uma sociedade mais inteligente, mais crítica, mais interventiva, melhor! – como fulcral que é na construção duma democracia que se aguente sob o peso de tantas ameaças (externas e internas).
Tenho andando tão distraída das tricas políticas (uma expressão que está muito em voga nesta transição para a coleção Outono/Inverno) que dou por mim a pensar nas coisas mais absurdas. Dei-me conta, por exemplo, de um grande contra-senso que rodeia o nosso sistema político: se nas eleições autárquicas votamos para eleger a constituição das assembleias municipais e simultaneamente o executivo camarário, nas eleições legislativas já não acontece o mesmo. Nestas, elegemos os deputados que irão integrar a Assembleia da República e é tudo. Não conhecemos nunca, durante a campanha para estas eleições, o hipotético Governo que formaria cada partido político caso se sagre “vencedor” das eleições. Retorcido, não vos parece?
É que no fundo, ao contrário do que acontece nas outras eleições e como já pudemos comprovar aquando da formação da “geringonça”, estamos a votar em abstracto; não estamos a votar para eleger directamente (e esta é a palavra central, para os mais distraídos) aqueles que comandarão os nossos destinos durante 4 anos, nem tão pouco os conhecemos sequer. Não conhecemos quem propõem os partidos para Ministro das Finanças ou que mudanças estruturais proporão ao desenho administrativo do próprio Governo (veja-se por exemplo o caso do Ministério da Cultura, obliterado pelo Governo PSD/CDS e recuperado por este último Governo PS).
A mim, isto parece-me um alicerce muito periclitante para uma democracia (que se queria) robusta. Mais ainda se tivermos em consideração como são formadas as listas dos partidos: organizam-se por diferentes círculos eleitorais, distritais, e compõem as suas listas grosso modo por nomeação directa. O que significa que os candidatos a deputados são apontados pelos quadros partidários; umas vezes por mérito, certamente, outras nem tanto. Se a isto acrescermos o crivo que advém do poder central de cada partido (e as polémicas no seio do PSD foram bem conhecidas, originando uma campanha algo errática ao longo do território), percebemos que este tipo de sistema político está claramente em falência. (Honra seja feita ao LIVRE, o único partido político que realizou eleições primárias no seio do partido para cômpor a sua lista de candidatos.)
Esta não é a única incoerência que encontramos no nosso sistema político: a abstenção, enquanto atitude demissionária de responsabilidade cívica, tem atingido dimensões verdadeiramente preocupantes, e não será fruto do acaso. Poderemos efectivamente dizer que este ou aquele partido ganhou com maioria absoluta se a abstenção rondar os 60%? Eu acho que não deveríamos poder. Assim como também os votos em branco são votos: expressam uma vontade, uma revolta que chegou a hora de começar a ser ouvida. Não me interpretem mal, não estou a sugerir como alguém se lembrou bem recentemente, que façam equivaler a percentagem de votos em branco a uma percentagem de cadeiras vazias no Parlamento. Mas talvez seja relevante pensar-se no que estes exprimem: uma falta de confiança no próprio sistema político, expressa por pessoas que ainda não se demitiram desta tal responsabilidade cívica tão alardeada. Essa falta de confiança, que a certo ponto inviabilizará a actuação política do futuro Governo (de formas que não serão óbvias, mas que já se vêm sentido de forma agonizante ao longo da última década), merece ser escutada. Mesmo que ainda não inviabilize eleições.
30-09-19
Era uma vez...na Hipsterlândia.
O Verão começa agora o seu declínio, as férias convertem-se em miragem da memória, e pega-se-me à pele uma nostalgia que vou tentando desbravar. Não sei o que mais me aborrece: se pensar no tempo que leva até voltar a encontrar o bucolismo do mês de Agosto, se constatar que o mundo se transforma lentamente numa espécie de Disneylândia da comunidade hipster: a Hipsterlândia.
Já ninguém vai ouvir concertos. Ou lê um livro com o deslumbramento de quem espera encontrar-se lá dentro. Para esta comunidade em crescimento, o importante é estar lá: naquele momento, vivido com a intensidade fugaz duma story no Instagram. É locomover-se pelos círculos que alguém (quem?) decidiu ser trendy e ter a certeza que se tem sempre algo a dizer sobre eles.
Verão é sinónimo de festivais. No nosso país já ultrapassam os 150 e há-os para todos os gostos; são tantos e no entanto são cada vez menos os festivais de música. Diria até que são inversamente proporcionais: quanto mais festivais de Verão aparecem, menos são os festivais de Música que ficam. Isto porque ir a festivais parece ser cada vez mais um roteiro turístico, que os programadores se encarregam de tornar suficientemente apelativo, aprazível. Já não chega acampar no meio de milhares de pessoas: agora quer-se glamping. Já não chegam as barracas de hambúrgueres, pizzas, sanduíches: agora querem-se opções vegan e world food. Ir a um festival para imergir num ambiente em que a Música é a força motriz que desbloqueia pulsões e descobertas é uma memória que pertence às caixinhas bonitas onde guardamos as relíquias do passado.
Hoje o que importa é aparecer, dizer que se esteve lá (seja num festival ou noutro “evento” qualquer), e claro, ser-se visto, notado, assinalado. Nas reportagens aos concertos proliferam fotos do público; existem mesmo situações aberrantes em que parece ser mais importante ver-se quem foi assistir a tal concerto, do que quem nele tocou. Parece cada vez mais recorrente ver nas primeiras filas destes concertos não pessoas interessadas em ouvi-los, mas antes em fruir toda uma “experiência” diligentemente documentada (disponível para consulta num sem-número de plataformas virtuais) . Em vez dos groupies do passado, é ver estes hipsters modernos neo-burgueses em frenesim pelas redes, à procura das fotos em que aparecem, ansiando o dia em que se sentem importantes, úteis, válidos.
Esta figura revela-se na sua idiossincrasia, sempre a mesma fórmula repetida até à exaustão: pequenas tatuagens espalhadas pelo corpo (discretas, mas infalíveis), argolas com fartura, seja nas mãos, nas orelhas ou no rosto, tentando que não se perceba que aquele ar casual de quem vestiu a primeira coisa que lhe apareceu quando saiu da cama foi na verdade estudado durante 2h em frente ao espelho, o cabelo, num desalinho e sem ver banho há uma semana, em apanhados despreocupados (na verdade milimetricamente reproduzidos a partir de tutoriais do Youtube). Um mau-gosto nauseabundo com pernas e sem vontade própria, eis esta figura, o novo modelo hipster do séc. XXI.
Para estes diletantes ditadores de tendências, o importante não é ver mundo: é que o mundo os veja. As nossas cidades mudam, na ânsia de acolher estes “nómadas digitais” – como também lhes chamam, não cientes de que são uma e a mesma coisa -, atendendo aos caprichos que apenas acrescentam selfies. Numa época em que o turismo, agora tornado low-cost, é cada vez mais apontado como um flagelo que devasta comunidades, é ver os espaços a transformarem-se: frases motivacionais penduradas pelas paredes em vez de Arte, sons a ocupar e entreter o pensamento em vez de Música que o liberte, as áreas cada vez mais circunspectamente funcionais (não vá uma pessoa perder-se). O que interessa é que tudo seja “instagramável”: em cada canto, um enquadramento perfeito para uma foto, o narcisismo fazendo-se verbo conjugado.
É claro que tudo tem preço e tudo vem sendo tarifado. Se sentado numa esplanada a ver a vida passar se ganham os dias, então aos poucos isso passa a ser privilégio de quem o pode comprar. Consomem-se as cidades como se consome tudo resto, na ânsia canibal de preencher um vazio que vai ficando, sem que se saiba de onde veio. Destroem-se tenazmente as comunidades que outrora edificaram estas cidades, à medida que a vida real vai sendo afastada para bem longe. A autenticidade das vidas de pessoas reais ocupa demasiado espaço neste mundo cada vez mais virtual; o mundo sem filtros consegue ser assustador. O que sobra são apenas reflexos, ocos e estáticos, nas fotos que vamos acumulando, tudo tão very typical mas ao mesmo tempo tão incomportável, tão artificial, vidas em decomposição. O meu Verão teve um momento em específico que representa a antítese de tudo isto; foi a festa de aniversário de um amigo: na casa dele (não num espaço que alugou para o evento) reuniu umas poucas dezenas de amigos que pouco se conheciam entre si (nem sequer das sugestões de amizade do Facebook), numa sunset party em que cada um trouxe o que quis (sem carimbos à porta). Uns trouxeram comida, outros instrumentos, outros vontade de dançar e festejar, outros saudade. Nada se tarifou e nada se cobrou, e francamente não sei se a experiência terá servido para semear umas quantas stories por aí. Sei sim que saímos todos de lá mais ricos: cantamos e dançamos juntos, partilhamos comida em várias línguas diferentes, vimos avançar a madrugada à medida que fomos perdendo o tempo. E ali, perdida na madrugada e inebriada de tudo o que realmente importa, me encontrei: o mundo real, fora do parque de diversões, sem filtros e sem condições, é muito mais bonito.
Os combustíveis estão em greve, ou percebi tudo mal?
Não se ouve falar noutra coisa que não na “greve dos combustíveis”. A própria nomenclatura, já de si ridícula (façam-me a indulgência de imaginar os combustíveis em greve e já verão), parece vir enunciar o absurdo que tem presidido à opinião pública sobre o assunto.
Vejamos: esta greve tem um pendor político mais acentuado que outras? Tem. Esta greve é impactante, porque afecta muitos sectores da vida em sociedade (dos quais, a economia, o aparente Santo Graal da nossa actualidade)? É. Esta greve, tão ambivalente nas motivações e tão incómoda no timming e na forma, parece às vezes despropositada e a roçar o absurdo? Um bocado. De todas as perguntas, estas e as outras, só há uma que importa: e então?! Acaso o direito à greve passou a ter um barómetro?! Ou um juiz que decida se ela é válida o suficiente, escorreita e inócua o bastante?!
É este o país que queremos, neste mundo que temos? Eu não. Um país em que as greves servem apenas para manter a ilusão de que vivemos num Estado de Direito e em plena democracia, em que o governo e a comunicação social que se queria isenta se aliam para tentar instilar o ódio de classes, virando trabalhadores uns contra os outros, não é um país que me sirva.
Somos gado nas mãos de uns quantos pastorinhos, eis o que somos.
Todos encarneirados em filas nas bombas de combustível, afinal foi um senhor de fato e gravata que no-lo recomendou, com medo não de que o país paralise, não sejamos hipócritas; medo sim de não conseguirmos chegar a Albufeira para os nossos 15 dias esparramados num quinhão de areia de 4 m2 e banhos de mar feito de descargas. Bem-haja os nossos 15 dias num hotel sobrelotado, cheio de música aos gritos que nos impeça de pensar, comendo comida requentada sei lá quantas vezes em restaurantes cheios, de filas, de barulho e de gente; enquanto isso, o livro que compramos no Continente e que nem sequer sabemos quem escreveu permanece por abrir, ainda que o arrastemos para todo o lado, mais não seja para tirar uma foto que nos mantenha a ilusão de ainda sermos seres sencientes.
Enfurecemo-nos então contra os camionistas, esses escroques gananciosos que põem em risco as nossas belas férias, perdão, o país. Já conseguiram um aumentozito, que querem mais? Recebem muito mais do que aquilo que aparece nos impostos que descontam, toda a gente sabe! Mesmo que haja vários sindicatos, bem diferentes quer nas motivações quer no estilo de negociação, o que eu sei – que é o que passa nas notícias a toda a hora – é que só um importa: nesse abandonaram as negociações e quem os representa é um passarito a querer ser passarão; estão-se a manifestar porquê, se eu estou bem pior?!
Neste egocentrismo institucionalizado o Capital vem derrubando uma por uma todas as muralhas que nos vêm guardando desde a 2ª metade do séc. XX; enquanto isso, vamos esfacelando todo o sentido de comunidade e de humanidade per se, esquecendo que apenas somos Humanos enquanto formos seres gregários.
Assim, parece-me claro que o sindicalismo e o direito à greve têm vindo a ser tenazmente corrompidos; talvez porque esta se revelou a forma mais eficaz de os comprometer, pela ameaça que representam num mundo povoado por este capitalismo sem lei. Já o vimos antes, os tempos têm sido prolíficos em greves injustificadas: a greve da AutoEuropa e a dos estivadores (que quase nos arruinaram o investimento estrangeiro, especialmente o da mui nobre e venerada Alemanha), a dos enfermeiros (que com a Saúde não se brinca) e a dos professores (que em tempo de avaliações quiseram deixar de ser escravos)... em todas fomos assistindo, permitindo e instigando a destruição deste direito que se queria inalienável. Com esta, o poder político mostrou claramente ao serviço de quem está quando decretou os “serviços mínimos”. Como disse Bukowsky, “a diferença entre uma Democracia e uma Ditadura é que numa Democracia votamos primeiro e recebemos as ordens depois; numa Ditadura, não precisamos de perder tempo a votar”. Boas férias.
12-08-19
Recursos Humanos: o novo acordo semântico
Com um pé (de chinelo, claro, é favor não esquecer a casta a que pertencemos) na chamada silly season, há temas que se comprovam recorrentes, pelo menos na nossa imprensa: fogos e quedas de arribas, por exemplo, esses são certinhos. Eu, preenchida pelo lirismo que as férias à beira-mar sempre me imprimem, prefiro não falar desses temas, mas antes usá-los como recursos estilísticos. Já vos explico.
Não vai muito tempo, o ministro-adjunto da economia, Pedro Siza Vieira, deu uma entrevista ao Expresso cujo sumarento soundbite era: “o problema número um das empresas são os recursos humanos”. No artigo redigido por Joana Nunes Mateus, expõe-se a sua tese: aparentemente, a economia portuguesa só não cresce mais porque, por um lado, é necessário aumentar os índices de produtividade e por outro, é também necessário aumentar o número de trabalhadores qualificados. Em primeiro lugar, não deixa de ser assinalável que se insista na tese do crescimento económico perpétuo, esse constructo em decadência; como se as economias fossem (ou tivessem de ser) gráfico ascendente em permanência, ao invés dos fluxos oscilantes que realmente são e sempre foram. Eu, ingénua como me impõe a minha tenra juventude, estava em crer que as propostas para colmatar estas duas lacunas seriam coisas como reduzir os horários de trabalho (há partidos a propor nos seus programas eleitorais a redução para 30 horas semanais, convém realçar), aumentar o valor do salário mínimo nacional para valores minimamente adequados à realidade de Portugal na Europa, ou até reverter os avanços da chamada “flexibilidade laboral” na nossa legislação. Eu sei, ingénua era eufemismo; parva será mais adequado. As propostas de Siza Vieira passam antes por investir fundos europeus em programas de “formação técnica e especializada” e por conseguir “condições mais atractivas” para a contratação de trabalhadores estrangeiros, como seja facilitando prazos e procedimentos para conseguir vistos e autorizações de residência. Diz ainda que se se conseguir diminuir a carga fiscal para as empresas, se conseguirão melhores salários.
Já me sinto menos parva um bocadinho; portanto, bem entendido, o que ministro-adjunto propõe é continuar a recorrer ao dinheiro da Europa para formar pessoas que, segundo os defensores destas ideias, ou não querem trabalhar, ou não o sabem fazer (esquecendo, em segundo lugar, num mundo cada vez mais automatizado graças ao desenvolvimento tecnológico, o problema do pleno emprego), ao mesmo tempo que se procura incentivar a contratação externa (quiçá para promover a competitividade? Já se sabe que essa é uma excelente motivação: trabalha lá 14 horas por dia e é se queres, porque senão aquele engenheiro suíço faz o mesmo que tu em 6h!). Por um lado, formar melhor as pessoas, para pelo outro, ir contratar fora. Genial; todos os estudos que classificam os portugueses como profissionais altamente especializados e bem-formados devem estar enviesados, assim como aqueles que associam falta de produtividade a horários de trabalho demasiado carregados e a salários pouco compensatórios.
O problema das organizações não são os “recursos humanos”; é ter-se permitido, negligentemente, que as pessoas passassem a ser recursos, que os trabalhadores passassem a ser colaboradores e que o investimento em boas condições de trabalho (das quais faz parte, naturalmente, o salário) passasse a ser um custo. Não é apenas semântica, não sejam vocês ingénuos: é controlo do pensamento através da linguagem.
Assim, de mansinho e começando nas palavras que utilizamos para descrever o que nos rodeia, temos vindo a erodir as relações laborais a ponto de as ver desintegrar-se diante dos nossos narizes. Como aqueles turistas incautos que se põem debaixo das arribas em risco, arrastamos as jornadas de trabalho, uma após a outra, preenchidas por prepotência e, não raras vezes, de incompetência, à espera que acabem por nos cair em cima com a violência de uma derrocada. Meritocracia, respeito mútuo, bom-senso? Tudo areia que escorre velozmente das nossas estruturas em rápida erosão.
Assistimos, impávidos, enquanto lavra o imenso fogo que incendeia a nossa já tão frágil legislação laboral: concertação social, protecção na saúde e na parentalidade, conciliação entre a vida profissional e a pessoal, contratos sérios e horários de trabalho dignos, tudo direitos que uns poucos se dedicaram a inflamar a ponto de os tornar combustíveis num gigantesco incêndio que ninguém parece querer combater, mas que mata. O nosso universo laboral é uma selva em chamas, e só quem não depende do fruto do seu trabalho é que se recusa a olhá-la.
Não sr. ministro-adjunto, não são os impostos que impedem o salário justo: é este capitalismo desenfreado que busca o lucro absoluto, custe o que e a quem custar. Basta olhar para o outsourcing, para os lucros distribuídos pelos grandes accionistas de empresas com milhares de trabalhadores precários, para os números dos Tribunais do Trabalho. Não, não são os “recursos humanos”: o problema é perpetuarmos este ciclo auto-destrutivo de desumanização que grassa (também) no universo laboral, sem que vocês, os supostos eleitos para nos governar, mostrem vontade de mudar o curso desta embarcação a afundar. Já basta de fazer de nós parvos, ainda que estejamos na silly season. 29-07-19 artigo publicado na edição online da REVISTA RUA, a 29 Julho 2019. https://www.revistarua.pt/recursos-humanos-o-novo-acordo-semantico/
Assédio laboral: o flagelo.
Junho foi um mês em que, diz-se, assistimos a um bocadinho mais de justiça laboral em Portugal. A Cristina (não a dos programas da manhã da televisão, mas aquela que se tornou o rosto do assédio laboral em Portugal), trabalhadora da tal vil corticeira de Santa Maria da Feira que como retaliação por esta ter denunciado um despedimento ilícito, a pôs a carregar e descarregar a mesma palete de rolhas todos os dias, durante todo o horário de trabalho, foi reintegrada (agora pela 2ª vez) no seu antigo posto de trabalho. Ela reivindicou, ela denunciou, ela resistiu, ela nunca cedeu, e conseguiu assim a justiça que se impunha. A pergunta que eu coloco é esta: será que foi mesmo assim?
Cristina Tavares denunciou um primeiro despedimento ilícito à ACT, que obrigou assim a empresa a reintegrar a trabalhadora; fizeram-no, mas assediando-a diariamente, ao que a ACT aplicou uma nova multa à dita empresa; isto, por sua vez, originou o seu novo despedimento, com a empresa a alegar ser vítima de difamação; a ACT veio então aplicar novas multas, uma delas por mobbing laboral (no valor de 31.000€) e outra por novo despedimento ilícito, perfazendo assim um total de 3 multas aplicadas à empresa (que aceitou pagar a primeira - referente ao primeiro despedimento ilícito -, recorreu em Tribunal da segunda - referente ao assédio laboral -, e que ainda aguarda pelas diligências decorrentes da terceira, referente ao segundo despedimento ilícito); o Tribunal de Santa Maria da Feira deu razão à ACT e à trabalhadora no recurso da multa de 31.000€, sendo que ao longo do processo a trabalhadora sempre recusou as propostas de acordos extrajudiciais.
Esta mulher sempre procurou a reintegração na empresa, o que veio a conseguir neste mês. No entanto, eu questiono-me: se na 1ª reintegração a trataram como trataram, e se ao longo de todos os processos têm revelado uma conduta tão deplorável, como esperar que agora, da 2ª vez, já depois de condenados a pagar indeminizações pelos danos morais infligidos e pelo tempo em que Cristina esteve sem salário, vá correr melhor? Porque continuamos a entender os acordos extrajudiciais como “comprar o silêncio” dos queixosos? Eu sei que uma indeminização se esgota, e um posto de trabalho (principalmente numa certa idade, e na actual conjectura laboral) é uma salvaguarda inteiramente diferente. Mas sejamos honestos: que ambiente laboral vai ter esta mulher, que saúde, que vida? Um acordo, desde que vantajoso para o trabalhador, parece-me a mim uma justiça mais efectiva, porque conhecendo bem demais este tipo de realidades, não tenho qualquer esperança de que um patrão autoritário e sem escrúpulos alguma vez possa ser reconvertido, por mais multas que seja obrigado a pagar.
Houvesse já números para esta realidade (esta dos que sabem descrever com precisão o que é o assédio laboral, porque diariamente o sentem na pele), e certamente teríamos um combate diferente. Não sou das que desvaloriza os esforços dos sindicatos, até porque deles sou parte activa no meu sector de actividade, mas vejo com nitidez o quão cristalizados estes permanecem. O Estado não é um patrão; talvez por isso, é assustador verificar que, por um lado, os organismos fiscalizadores não são, nem de perto nem de longe, tão assertivos com as empresas e instituições privadas como o são com as do Estado (e nisso, a conduta da ACT pela região Norte apresenta indicadores muito óbvios para quem os decida analisar), e que por outro lado, que no combate sindical ainda se pense que estamos a lutar pela manutenção de direitos.
Desenganem-se: a luta que hoje se impõe já não é essa. A luta de hoje é para que as infrações à lei, grosseiras, prepotentes e à vista de todos, sejam punidas; é para pôr cobro a um profundo sentimento de impunidade que grassa pelos patrões do séc. XXI (desculpem-me claro, as óbvias excepções); é para impedir a paulatina degradação das condições de trabalho, em Portugal e no Mundo. Achavam o quê? Que esta conversa da flexibilidade laboral era só coisa de nos pôr a todos a produzir mais? Não é. Aliás, bem vistas as coisas, os direitos que hoje vemos ser comprometidos, só o são precisamente porque infrações à já tão torpe legislação laboral que hoje temos, ainda que escandalosas, permanecem por punir. Como não hão-de estar direitos básicos em risco (como o direito à greve, a um horário de trabalho equilibrado, a um salário constante ou a condições do mais elementar bem-estar social), quando assistimos diariamente a infrações severas à lei, e que não vêem nunca justiça?
Querem saber o que é o assédio laboral? Eu digo-vos: é ir trabalhar todos os dias sem saber se se vai receber ao fim do mês e quanto; é tentar ser útil e eficaz, produtivo como nos querem, enquanto se tenta antever onde estão as armadilhas montadas para nos apanhar; é estar em pausa e não poder falar livremente, porque se sabe que as conversas estão a ser gravadas ilegalmente, ou ver-se fotografado e filmado sem qualquer espécie de explicação ou consentimento; é ser completamente vilipendiado perante os restantes colegas de trabalho, ver histórias inenarráveis a ser inventadas e propaladas sem vergonha na cara, tendo em vista a mais completa ostracização social perante os pares; é saber que se luta também pelos direitos dos colegas e mesmo assim tê-los a insultar-nos, a inventar ainda mais histórias e a tomar parte das estratégias montadas para nos reprimir; é ver a nossa vida pessoal completamente devassada na tentativa insana de a conciliar com as obrigações profissionais que nos imputam; é ter de optar por uma baixa médica por motivo de esgotamento ou pela manutenção do emprego; é cruzar a porta dispostos a receber os insultos, as humilhações e os golpes diários que nos infligem. E mesmo assim, continuar a sair da cama todos os dias de manhã e ir trabalhar, sem desistir de denunciar e de procurar Justiça.
Um amigo pintava-me recentemente uma descrição para isto bastante mordaz: há muito quem esteja determinado a fechar portas; cabe-nos a nós colocar o pé na frente a servir de travão. Não importa que não consigamos entrar, não importa que o pé nos doa, não importa que a nesga de luz que entra mal chegue para iluminar; porque um dia, na distração dos que teimam em fechar a porta, em vez de um pé, será uma perna e depois um braço, até esta se voltar a abrir de chofre; porque mesmo que doa, enquanto o meu (nosso) pé aqui estiver, eles não hão-de fechar estas portas. E não é que é mesmo?
29-06-2019
Abstencionismo em Tempos de Cólera (ou uma análise às Eleições Europeias).
Calem-se lá um bocadinho com a abstenção. A sério. Estavam à espera de quê? O Expresso noticiou esta semana que somos todos uns grandes optimistas em relação à Europa, mas que nem sequer percebemos bem para que órgão estivemos a eleger (ou o que é que nele se faz) e que 69% das pessoas nem sequer conhecia o nome de UM candidato que fosse. Nem o Nuno Melo, caramba, andou o homem a apanhar couves para nada? Se calhar são estes os reais optimistas, os mesmos 70‰ que não votaram porque até nem é preciso (aquele 1% que sobra são aqueles que estão tão delirantes com a conquista da Taça pelo Sporting, que não se aperceberam que já era Domingo).
Eu sou das que vota, sempre, e das que se esforça por o fazer em consciência, sem partidarismos ou outras doenças. Leio os programas eleitorais, vejo os debates, penso e discuto, à grande. Mas quem sou eu para desvalorizar quem opta por não o fazer?! De que pedestal moral lhes posso eventualmente falar?! Votar é um direito (conquistado a ferro e fogo) e também um dever, sim. Não votar, principalmente por motivações fúteis (como as há), é lamentável. Mas a sério que vamos continuar a promover a incompreensão e a falta de diálogo numa Europa como a que vivemos hoje? Toda a gente aponta motivos e culpados (não tarda isto fica pior do que as guerras campais que se montam à custa do futebol!), mas ainda não vi ninguém falar do que para mim é óbvio: o grande motivo para uma tão elevada abstenção em Portugal é o sucesso retumbante duma campanha de embrutecimento da população muito bem montada. De pequenino se torce o pepino. Querem mais gente a votar? Eduquem-nos melhor. Numa sociedade cada vez mais acéfala, egocêntrica, narcisista, boçal e totalmente desprovida de espírito crítico, estão à espera que as pessoas saibam reconhecer a importância destas eleições? Eu não.
Vejo pessoas a defender o voto obrigatório e perda do direito dos abstencionistas à greve, vejo Miguel Sousa Tavares a defender uma espécie retorcida de sanções aos jovens que não votam...Quem querem, de facto enganar?! Qualquer pessoa com 2 neurónios funcionais reconhece a hipocrisia deste discurso anti-abstencionista promovido precisamente por políticos que integram partidos do “centrão”: a estes interessa-lhes que se mantenha o cada vez mais periclitante equilíbrio de forças vigente, que tanto dinheirinho conseguiu pôr a circular em bolsos alheios. Acham que queriam realmente que estes 70‰ votassem? Ainda acabávamos com 21 deputados comunistas, cruzes credo!
Eles são tão bons que até já acamaram o spin acerca da ameaça da extrema-direita muito bem acamadinho. Já temos grandes alianças a ser formadas, chamam-lhes frentes democratas. Poupem-me. Quando se torna por demais evidente que este capitalismo desenfreado mata, há sempre quem queira ainda mais liberalização, ainda mais flexibilidade laboral, e ainda menos despesismos. É fácil ver quem são e porque o fazem: basta ver onde e com quem descansam os lucros dos últimos 5 anos. Parabéns: se hoje temos uma Europa com um quarto das suas forças políticas representadas por partidos racistas, preconceituosos, xenófobos e populistas, é a vocês que o devemos, partidos do arco do poder que tão bem souberam ceder aos interesses da alta finança e do compadrio. Como têm a lata de se apropriar do que é ser-se democrata?! Haja vergonha na cara.
Isso, aliado a uma crise humanitária sem precedentes e ao estado de emergência global provocado pelas alterações climáticas, fazem dos dias que vivemos, dias muito conturbados. Pessoalmente, fico feliz por saber que vamos ter uma mão cheia de deputados portugueses a defender aquilo que importa (embora tivesse gostado que fossem 6: Rui Tavares convenceu-me com a defesa da utopia que é ousar-se mudar todo o esquema político europeu): mudanças estruturais na legislação laboral, renegociação dos valores da dívida, soberania dos povos na gestão do seu Orçamento de Estado, direitos sociais inalienáveis.
Não é o PS que se sagra vencedor cá pelo burgo, não sejam distraídos: é o PAN e o Bloco de Esquerda. Com um resultado que duplica o conseguido em 2014, este último prova finalmente aquilo que há muito se perspectivava: os bloquistas apostaram no cavalo certo quando montaram esta “geringonça”, porque puderam provar que sabem e que podem ser poder, e isso viu-se nas urnas, com um número de eleitores em claro crescimento. Assustador, não? Principalmente para os saudosistas encapuçados que já não se escondem no armário e andam à solta pelo CDS. António Costa que se cuide; já toda a gente reparou que este “acordo à esquerda” não aguenta muito mais tempo, porque finalmente esbarrou naquilo que são pontos de divergência incontornáveis: a construção de um real SNS e as mudanças estruturais que se impõem na legislação laboral, necessidades emergentes em toda a Europa, mas que algumas forças políticas estão determinadas a refrear.
A revista Forbes colocou Portugal como um dos melhores países da Europa para se viver (diz o título da notícia). Eu recuso-me a lê-la para tentar perceber: um país com a electricidade mais cara da Europa, com uma das gasolinas mais caras da Comunidade Europeia, com valores de renda altíssimos e completamente desfasados da realidade, um país com serviços públicos fundamentais (como a Saúde e a Educação) completamente caucionados por uma suposta falta de dinheiro, enquanto este é sistematicamente desviado para “salvar” a banca da ruína recorrente que resulta dos empréstimos a fundo perdido feitos a “amigos”...algum dia será um dos melhores países da Europa para se viver?! Só no mundo das revistas cor-de-rosa. Se perante este cenário há quem acredite que não votar é um protesto? Há. Mas não votar não é o mesmo que votar em branco, e protestavam melhor se se dessem ao trabalho de conhecer de forma menos superficial o trabalho e as ideias defendidas por cada candidato, para votar naqueles que se dão ao trabalho de acreditar que é possível mudar tudo isto. Desde que lá estejam sentados.
27-05-19
Ideologia de Género – vade retro, Satanás!
Há pessoas que ouvem falar de igualdade de género e imediatamente pensam em ideologia de género. Há outras que ouvem falar de ideologia de género e imediatamente pensam em “homossexualização” da população. A confusão está instalada, e neste admirável mundo novo qualquer um se sente apto para discorrer acerca deste tema. A verborreia é tanta e defendida tão acerrimamente, que dei por mim perplexa, assistindo a como uma luta por poder ser livre e aceite, facilmente se transforma num plano de engenharia social, parte do marxismo cultural (mal) camuflado em que vivemos. Ou seja, simples tentativas de conciliar um mundo cada vez mais plural e amplo (ainda que falíveis muitas vezes, concedo), assumem-se tentativas de extinguir a espécie humana. Fascinante.
Vamos lá esclarecer; há, portanto, aqui 3 conceitos que por ignorância se misturam com deprimente frequência: igualdade de género, ideologia de género e orientação sexual. Falemos então de orientação sexual, que será à partida o conceito menos confuso dos 3: as pessoas podem ser heterossexuais (atraídas por indivíduos do sexo oposto), homossexuais (atraídas por indivíduos do mesmo sexo), bissexuais (atraídas por indivíduos de ambos os sexos), pansexuais (atraídas por indivíduos independentemente do seu sexo) e assexuais (que não sentem atracção sexual). É muita fruta, não é? Eu sei que crescer com uma visão unidimensional deste conceito e depois vê-la transformar-se nisto (e espero não estar já desactualizada!), é difícil. Mas isso não justifica que 1) se categorize quem se sente diferente daquilo que será a norma como doente, ou que 2) se estabeleça um paralelismo entre a defesa de direitos iguais com doutrinação ideológica. Já igualdade de género remete-nos para outra coisa: direitos iguais para todas as pessoas. Defender a igualdade de género não é dizer que homens e mulheres são iguais, porque não o são; é apenas defender que ambos merecem os mesmos direitos. No trabalho e na vida em sociedade, o contrário não é sequer defensável. É profundamente irritante que 1) haja pessoas que ouvem ou lêem a palavra “género” e imediatamente a associem a doutrinação ideológica, ou que 2) ouçam falar de “igualdade” e se abespinhem ao ponto de se revelarem misóginas.
Ideologia de género é inteiramente diferente de ambos: consiste em reconhecer que há pessoas que se identificam com um género diferente daquele que podem aparentar, ou inclusivamente de forma não-binária (homem ou mulher). E, pasmem-se os arautos da moralidade, isto é algo tão antigo quanto a própria civilização: sempre existiram homens que se vêem como mulheres e vice-versa, isto não tem rigorosamente nada de chocante ou sequer anti-natura! Biologicamente, há 3 factores que determinam o sexo do indivíduo: genitália, distribuição de cromossomas e produção hormonal. O mais comum é os 3 estarem em concordância: um bebé com genitália masculina à partida terá uma distribuição de cromossomas tendencialmente masculina e correspondente produção hormonal. Mas nem sempre é assim: sempre existiu aquilo a que vulgarmente se chamava de pessoas hermafroditas (intersexuais), assim como sempre houve pessoas que tendo, por exemplo, genitália feminina, têm uma distribuição de cromossomas e consequente produção hormonal mais predominantemente masculinas, o que se traduz num sentimento de desajuste em relação ao género que no imediato se lhe atribui. Assim, e ao contrário do que tantos se esforçam por propalar, a própria biologia explica que haja homens que se identificam como mulheres ou mulheres que se identificam como homens ou pessoas que não se identificam exclusivamente com nenhuma das duas.
Identidade de género é diferente de expressão de género, convém desde já esclarecer: uma é como uma pessoa se sente e se identifica, outra é como se exprime. E, tal como todos nos exprimimos de formas diferentes em cada dia (basta ver as tantas máscaras que variamos diariamente ao longo da existência), também isto não é estático, ainda mais se considerarmos que o contexto social influencia sim, a forma como nos vemos e nos exprimirmos. Se o sexo com que nasce o indivíduo é determinado biologicamente, o género, esse constrói-se sim: quando restringimos determinados comportamentos e funções ou a homens ou a mulheres, agudizando o sentimento de desajuste naqueles que saem fora deste nosso mundinho estilizado a preto e branco. Quando falamos em desmontar as construções sociais de género, estamos a falar em deixar de circunscrever determinados comportamentos, funções e oportunidades ou a homens, ou a mulheres, de forma a criar espaço para que todas as pessoas se consigam compreender e aceitar a si mesmas Apenas e só. Tudo isto não é parte de um plano para destruir a Humanidade, meus senhores. Ninguém anda a tentar “homossexualizar” as nossas crianças, estejam descansados; apenas se tenta incutir, num Mundo cada vez mais cheio de ódio e intolerância, valores opostos. Não deixa de ser assinalável que este belicismo que vemos agora a despontar, provenha de franjas altamente conservadoras da igreja cristã: portanto, acreditar em entidades divinas e milagrosas que não se vêem mas que conduzem a moral e os costumes, tudo OK; acreditar que há pessoas que se possam sentir diferentes, isso já não. Faz sentido. Uma Santa Páscoa a todos.
Na semana que passou não se viu falar noutra coisa que não nos programas “Quem quer casar com o meu filho?” e “Quem quer casar com o agricultor?”, da SIC e da TVI respectivamente. (Aquela história do Novo Banco quase que passa despercebida.) As redes insurgem-se contra a perpetuação duma visão machista e utilitária da Mulher, coisa que não se viu por altura dos programas “Casados à Primeira Vista” (SIC) e “First Date” (TVI). Nem por altura da ascensão dos reallity shows, coisa curiosa. A mim, não é esse o ângulo que me interessa. Não me vou juntar a horda de vozes que clamam por uma sociedade menos machista, não se preocupem (não desta vez, pelo menos). Importa-me entender não o fenómeno, mas o que o causa: o que procuram aquelas pessoas num programa destes?
Eu coloco o ónus nas redes sociais, e no papel que têm desempenhado no desmantelamento das relações afectivas, um admirável mundo novo que é terrivelmente assustador. Em 2017 ouvi João Miguel Tavares a dizer, num dos programas do “Governo Sombra” (TVI24) que “o Mundo está melhor depois do Facebook”; recordo a pungente estranheza que em mim se incrustou até hoje. De facto, nas redes sociais eu não consigo diagnosticar benefícios. Têm crescido cada vez mais como esgotos a céu aberto, a gangrenar uma podridão que antes permanecia desconhecida. As redes sociais têm elevado a idiotez e o ódio a níveis assustadores; estão activamente a moldar o mundo em que hoje vivemos, e não é para melhor.
Na era da informação, o acesso é livre, mas não é libertário. Tudo está à distância de um clique, e no entanto são as próprias estruturas que albergam essa informação (e que propalam a imagem de que são as únicas a fazê-lo) que nos afunilam o acesso. Há 10 anos atrás, uma simples pesquisa num motor de busca dava resultados sempre diferentes; hoje mostra sempre a mesma lista de prioridades (definida segundo princípios comerciais, naturalmente). Há assuntos que se tornam “virais”, que se espalham por todos os devices espalhados por aí e que instigam as pessoas naquilo que têm de mais primário. Já dizia Umberto Eco: “as redes sociais deram voz aos imbecis”. Tudo é válido, todos temos uma opinião e pior, o nosso direito à liberdade de expressão consagra-nos o direito a propagandear a nossa própria estupidez; ai de quem ouse insinuar que melhor mesmo era estar calado!
As nossas acções por essa Internet fora deixam um rasto, um rasto que é rentável. Tão giras aquelas sugestões do Facebook, não são? Na verdade elas aparecem-nos porque alguém teve acesso às nossas conversas e demais trocas de informação, ou porque estas redes se dedicam a vender na sombra este nosso rasto de migalhas (cliques, partilhas, visualizações, conversas e tudo, mesmo tudo o que possam imaginar). Sou a única a achar isto perverso, perigoso? Um “amigo adicionado” que de repente traz consigo dezenas de totais desconhecidos que se passam a cruzar com a nossa figura virtual em “sugestões de amizade”; feeds de notícias (e ilustram bem ao que vêm, pequenas gamelas onde vamos alimentar ninguém sabe em concreto o quê) que se debruçam mais sobre umas pessoas que outras, comandadas por estranhos algoritmos, entidades não-pensantes mas que nos roubam o pensamento, comandando-o. Tantas memórias guardadas (onde? por quem?) destinadas a servir meros interesses capitalistas, tantos pequenos quizzes de personalidade ou gostos pessoais (feitos para quê?) destinados a servir esses mesmos algoritmos (que tão bem consegue circunscrever públicos-alvo, maravilha liberal)...ninguém pára para pensar?
Não, ninguém pára; sempre ligados, sempre conectados. As redes que serviriam para nos aproximar, vão-nos apartando assim cada vez mais do outro. Cresce o narcisismo e o egocentrismo, diminui a empatia e a afectividade. Há qualquer coisa de tão vulgar em “adicionar amigos”, pessoas que não conhecemos de parte nenhuma mas que por qualquer razão nos são apelativas. É tão fácil encetar conversa com essas “amizades recentes”, não é?, claro que se as virmos numa esplanada nem as reconhecemos, são tantos os adds e os tags, que as pessoas se tornam cada vez menos reais. Aliás, as dinâmicas sociais que se verificam nas redes sociais seriam impensáveis na vida real, sob pena de caírem no ridículo. Mas não é só: estão activamente a transmutar a forma como nos relacionamos uns com os outros no “mundo real”. Já não falamos uns com os outros, trocamos mensagens instantâneas, vejam bem, a coisa anuncia alarvemente ao que vem: promover um contacto social edificado a interações ausentes, aproximações que não são reais e que apenas servem para nos dar a ilusão de que não estamos sós. Quantos de nós já pegaram no telemóvel para responder a uma mensagem de alguém enquanto estávamos a conversar com outro alguém real, fisicamente ali? Haverá maior solidão do que estas conversas entrecortadas e hiperativas, em que o mundo virtual se sobrepõe frequentemente ao mundo real?
Mas as redes não mudaram apenas a forma como interagimos com o outro; mudaram-nos a nós. O culto narcisista é tão violento que acaba por se assumir a norma. Já alguém parou para pensar no quão ridículo é o conceito de selfie? Há uns anos atrás, só alguém sem ninguém para o fotografar é que tirava fotos a si próprio; hoje toda a gente o faz, colocando-se em situações com vão desde a grosseria e o incómodo, ao perigo real (seu e dos outros). Mas não são só selfies; é fotografar e publicar cada pequeno gesto de cada pequeno dia de cada pequena existência. Se nos olharmos bem de cima, veremos o quão povoadas de solidão são as nossas vidas: pessoas que se entretêm a si próprias construindo um avatar com que povoamos estas redes (ditas) sociais. Vamos ficando cada vez mais doentes, cada vez mais distantes do que seria a nossa tendência biológica enquanto seres sociais (como todos os primatas), cada vez mais obcecados com o nosso próprio mundinho. Sabem a quem isto interessa? A quem nos quer a todos bem amestradinhos enquanto se dedicam a explorar mais e mais os nossos recursos, promovendo o ódio, a injustiça e a desigualdade. Mas entretanto o Instagram e o WhatsApp sofrem um ligeiro abalo nos seus servidores e já nem nos lembramos de mais nada. Alguém se espanta, pois, que este tipo de programação comece a germinar como cogumelos? Numa sociedade de pessoas cada vez mais doentiamente sós e auto-centradas, as relações afectivas estão em vias de extinção. É, de resto, todo um mercado em expansão: veja-se o Tinder e outras que tais, redes destinadas a forçar as pessoas a um contacto íntimo com ilustres desconhecidos. E é tão mais fácil, não é? Conhecer realmente alguém dá trabalho, é coisa para demorar um tempito; apaixonarmo-nos é coisa arriscada, tanto corre bem como se leva um tombo daqueles. Assim, fica tudo tão rápido e limpo: tudo se destina a um consumo rápido e a uma satisfação fugaz (marcas indelevelmente características deste capitalismo exacerbado em que nos movemos), inclusivamente as próprias interações sociais e afectivas. E, cada vez mais doentes e mais sós, não é realmente assim tão estranho ou ridículo que procuremos uma real conexão com outro ser humano através de um programa que, receita rápida e eficaz, nos oferece isso, pois não?
18-03-19
Tire daí a mão, stôr.
A relação professor-aluno devia ser sagrada, inviolável. Usá-la para satisfação do próprio ego, defeito de carácter que infelizmente prolifera, já é mau. Quando isso resvala para situações que colocam os menores em risco, é grave e é punível por lei. Mas a lei só funciona quando retiramos estas situações da obscuridade e as trazemos para a luz do dia. Ou em bom português, quando se está disposto a dar com a boca no trombone.
Há um tabu que se esconde nos meandros do ensino artístico, de que todos vão falando mas sobre o qual não parece existir uma real consciência. Num universo recheado de egomaníacos encapuçados, adultos imaturos e sem a mínima consciência social (pois gastaram mais horas a praticar a sua arte do que a vivê-la), não são raros os casos de alunas (embora alunos também os haja) que se transformam em vítimas de abuso sexual de menores. Pode ser aquele professor de fagote ou trompete, aquele professor de violino, trombone ou bateria, aquele professor de teatro ou dança. Aquele professor “fixe” que é incrível com os alunos, parece estar sempre rodeado deles a toda a hora, e vai-se a ver até é a modos que evitado pelos adultos. Sabem o que é que isso diz? Que os pares sabem bem o quão execrável é o sujeito, já ouviram as alcunhas que lhe atribuem, já lhe apanharam os olhos presos em decotes firmes de corpos em transformação, já sentiram o desconforto latente em alunas que parecem encolher-se na sua presença. Mas que continuam a assobiar para o lado, escudando-se nas mesmas desculpas vãs de sempre: a voluptuosidade das miúdas, os tempos modernos que as tornam mais atrevidas, e “ai que um homem também não é de ferro”.
Repararam que falei em abuso sexual de menores e não em pedofilia? Não é ao acaso: a lei enquadra a pedofilia num contexto direcionado a vítimas pré-pubescentes. Quando as crianças (sim, porque continuam a ser crianças e convém não o esquecer) entram na adolescência e sofrem estes abusos, isso configura um outro quadro jurídico. E importa-me realçar a diferença por uma razão: enquanto que a pedofilia é facilmente repudiada, e por isso, combatida, nestes círculos parece ser aceitável falar-se de como aquela aluna de 16 anos é já “uma mulherzinha”. Um professor, homem adulto nos seus 30, 40 ou 50 anos, pode falar livremente acerca de como a Luísa é podre de boa, ela até gosta de provocar e tudo, traz cada decote para as aulas, ai se não fosse ainda uma miúda. Já perdi a conta às vezes em que assisti a conversas com este teor, junto de colegas.
Umas mãozinhas nos ombros para os relaxar, que senão o corpo tensionado não permite a boa execução musical, uns abraços bem sentidos e bem esfregados de satisfação pelas vitórias alcançadas e enquanto isso esfrega-se também as mamas tão apetecíveis dela contra o peito, umas festinhas no rosto para retificar embocaduras, isto para enumerar as tentativas menos óbvias. Mas também as há declaradas: aquela boleia insistente e recorrente para casa, os ensaios fora de horas que se revelam individuais e em escolas fechadas, os “exercícios” deitadas no chão debaixo do corpo do professor, os “beijos técnicos” só para perceberem como se traduz a carga emocional desta ou daquela cena em aulas de interpretação, aquelas “correcções do diafragma” em canzanas verticais e sacudidas. “Mas são elas que querem!”, gritam eles. São elas que provocam, são elas que vivem enamoradas por aquela figura do professor que lhes mudou a vida, são elas que até nem vêem malícia nenhuma em tais acções, “o professor é que tem uma ligação muito especial comigo”.
Não, minhas queridas. Qualquer miúda de hormonas fervilhantes pode cair no fascínio fácil por alguém mais velho, mais vivido, mais estimulante. Não permitam que vos façam sentir culpadas: todas tivemos aquelas paixões por este ou aquele professor, mas nem todos as alimentam com flirts e certamente nem todos se aproveitam disso. Ninguém, seja um pai, um tio, um professor ou um director, tem o direito de vos tocar de forma que vos deixe desconfortáveis. Mesmo que inadvertidamente o tenham alimentado em pequenas coisas que julgaram inocentes. A culpa não é vossa: foram manipuladas de forma a irem permitindo cada vez mais avanços dissimulados, até darem por vocês reféns duma situação de que perderam o controlo. E se por acaso acreditarem mesmo que estão apaixonadas e que são retribuídas, e que devem por isso defendê-lo, há que recuperar a lucidez: esses homens não são mais que bestas, e a única coisa que pretendem é satisfazer necessidades de um ego que reveste um débil mental. Ele não te ama, porque ele não ama ninguém a não ser ele próprio. Um exercício de raciocínio simples: se ele é assim tão interessante e fascinante, porque nunca lhe conheceste mulheres adultas que o admirem como tu? Pois.
Não, meus cabrões, não são elas que estão erradas: cabe ao adulto saber traçar a fronteira e defender a infância daquelas crianças que a julgam já ultrapassada. O vínculo que se cria com um professor desta natureza, onde a componente emocional ocupa tanto espaço de aprendizagem, onde se está frequentemente sozinha com o professor na sala e onde o trabalho é por vezes tão físico, tem de ser inviolável. O professor não pode nunca usar o ascendente que forçosamente tem sobre aquela pessoa em formação para a manipular de forma a retirar dela comportamentos sexuais ou sexualizados. Quem o faz (e são tantos os que caminham entre nós impolutos!) só merece o dedo apontado e a verdade gritada: és um nojo, és um abusador de menores, alguém com um índice de maturidade tão baixo e um valor pessoal, intelectual e artístico tão pobre, que as únicas gajas que consegues deslumbrar são miúdas. Não és doente, que isso não é doença: é impotência. É saberes que com uma mulher adulta e bem segura de si, que seja capaz de te confrontar com a tua própria irrelevância, nunca o conseguirias pôr de pé.
24-02-19
E nada acontece?
Ao longo desta semana, uma série de interpelações por parte de colegas de profissão levou-me a refletir acerca da aparente imutabilidade dos contextos laborais em que nos movemos no Ensino Artístico Especializado (e digo aparente exprimindo desde já uma vincada opinião contrária). Já escrevi bastante acerca do Contrato Coletivo que nos rege presentemente, que nem sequer merece esse nome. Desde 2015 que os professores que tiveram a coragem de não o subscrever, continuam a trabalhar numa grosseira falta de respeito do seu país para com esse mesmo trabalho. Em Janeiro, pudemos ver o que o nosso poder político pensa acerca das preocupações expressadas pelos sindicatos, num debate que seria cómico, se não fosse trágico.
Os argumentos são primários e superficiais: ai que o poder político não se pode sobrepor à concertação social, que aparentemente conseguiu produzir um acordo “histórico”, subscrito por mais de 600 entidades patronais, e ai que se as condições no ensino público são más, não há porque querer equiparar os profissionais do privado. Perante tais argumentos, torna-se óbvio o petulante desconhecimento acerca da situação real vivida no terreno: para a concertação social cumprir a sua função, há que assegurar mecanismos que a regulem, uma vez que a nossa legislação laboral está em clara desintegração; e segundo, das tais 600 entidades patronais, muitas são completamente contra a convenção colectiva alcançada e não a aplicam. O último argumento é tão infantil e condescendente que nem merece ser desmontado, porque a sua estupidez será notória.
Perante isto, perguntam-me: quando é que iremos ver mudanças neste cenário? A minha resposta é, como sempre aliás, provocadora: quando nós, os professores e os músicos, assim o quisermos. O poder político representa a sociedade civil, que se vem demitindo da sua função primordial, que é, por sua vez, instigar esse mesmo poder político. Não chega estar à espera, não chega queixarmo-nos pelos cantos. Urge estar disposto a construir a mudança, que é, por definição, algo muito diferente de esperar por ela.
Precisamos de mudanças urgentes na legislação: que se altere o Código de Trabalho de forma a salvaguardar a questão da caducidade (que permite, neste momento, contratos colectivos anuais sucessivos, algo que degenera num rápido desintegrar de condições de trabalho alcançadas com anos de luta), mas também a questão da representatividade. Um país que permite que, em sede de concertação social, a frente sindical com menor representatividade do sector negoceie em exclusivo uma contratação colectiva que é depois aplicada a todos, é uma mentira. A parte não pode decidir pelo todo, e se queremos que a concertação social funcione, urge salvaguardar mecanismos que impeçam este enviesar da mesma.
Quem muda a legislação não somos nós, é o poder político; assim, é urgente provar aquilo que para todos nós será óbvio mas que não o é para os agentes políticos envolvidos (ainda para mais, subjugados aos interesses económicos instalados). E é isso que nós, professores do Ensino Artístico Especializado, nos temos vindo a escusar de fazer, esperando sentadinhos que os sindicatos para os quais pagamos quotas “façam alguma coisa”. Caros colegas, os sindicatos estão a “fazer alguma coisa”: estão a reestruturar as suas estruturas de maneira a conseguir apoiar os professores do privado de forma mais eficaz, estão a massacrar as instituições públicas de forma a denunciar os problemas e os esquemas, estão a concertar esforços em prol duma estratégia mais estruturada! Acham pouco?
Nós é que, pelo contrário, não estamos a fazer nada. Se as nossas entidades patronais não subscrevem este Contrato Colectivo, então urge exigir-lhes que o provem! Não chega dar opção de escolha (um direito básico que de tão óbvio, nem devia ser enaltecido), não chega deixarem-se ficar numa situação financeiramente confortável em que os professores deixam de ter carreira e se consegue assim amealhar um dinheirinho. Logo em 2015 os sindicatos lançaram o desafio: promover Acordos de Empresa. Quantas foram as escolas que espelharam em acções as suas palavras? Pois. Se não concordam e não o subscrevem, então prová-lo, ajudando a construir uma alternativa, passa por tornar evidente isso mesmo, e nada o faz melhor que umas centenas de Acordos de Empresa.
Mas isso não chega. Quantos de nós se sindicalizaram? E quantos dos que são efectivamente sindicalizados têm uma postura activa e constructiva? Os sindicatos promovem encontros, plenários e reuniões com razoável regularidade e os índices de participação são vergonhosos. Se não nos damos sequer ao trabalho de expôr os nossos problemas e de construir em conjunto soluções para os mesmos, estamos à espera de quê? Desculpem-me a intempestividade, mas eu estou farta até à ponta dos cabelos desta nossa postura servil, subserviente e displicente. “Ai que eu não entendo nada de leis e dessas coisas!”: quantos de nós já ouviram isto da boca de algum colega? É precisamente essa postura que nos torna presas fáceis nas mãos destas grande associações corporativas do patronato, que usa a nossa ignorância e permissividade em função dos seus interesses. Nos últimos 5 anos, a nossa situação regrediu décadas. Vamos continuar sentados a chorar porque a nossa sopa aguada e melosa tem ervilhas, ou vamos atirar com o prato e exigir o que merecemos?
09-02-19
Eles saíram do armário.
Começamos 2019 num registo assustador. Eles saíram do armário: o ódio, o autoritarismo e o fascismo. Eu sou pessimista por natureza e o que venho assistindo assusta-me e preocupa-me.
Ao longo dos últimos três anos, é só escandaloso. Importa-me colocar a tónica em dois acontecimentos recentes: em primeiro lugar, a tomada de posse de Bolsonaro como Presidente do Brasil. Como é que se elege um fascista?, anda o Mundo inteiro a perguntar. A receita é doentiamente simples: em sociedades completamente devastadas por profundas crises económicas e sociais, basta convencer as pessoas de que aqueles que melhor as representam não são aqueles que sabem mais que elas, mas sim os que pensam como elas. Quanto mais boçal, desordeiro e desbocado for o candidato, melhor, que as pessoas sentem-se cada vez mais legitimadas na sua própria boçalidade e grosseirice. São esses, os que pensam como nós, os que melhor compreendem os nossos problemas e que por isso os irão resolver. Isso de que os problemas da comunidade enquanto colectivo nem sempre são os problemas individuais de cada um (sujeitos vezes demais aos preconceitos singulares que rapidamente se têm transformado em colectivos) já não interessa nada.
Assistimos também a um fenómeno curioso: as tantas vozes que tão alto clamavam o indecoroso preconceito e incapacidade de partilhar dos valores duma sociedade democrática de Bolsonaro, agora parecem ser cada vez menos e berrar cada vez mais baixinho. Já repararam que Bolsonaro é hoje muito menos fascista do que era há uns meses atrás? Não é novo, já o assistimos com Trump: é fácil maquilhar a realidade com números fora de contexto e falseados, se lhes juntarmos uns quantos soundbites apetecíveis. Temos o nosso próprio Presidente da República a legitimar a sua governação, dado que foi um dos únicos dois líderes europeus a comparecer na cerimónia! As declarações são esclarecedoras, bem como aquilo que nelas não consta; o facto do filho de Marcelo Rebelo de Sousa ser presidente da Federação das Câmaras Portuguesas de Comércio do Brasil não terá provavelmente nada a ver com o assunto.
Em segundo lugar, a mais recente aparição pública de Mário Machado na televisão generalista. O personagem, quero acreditar que desconhecido da maioria dos meus leitores, é o fundador da “Portugal Hammerskins” (uma organização de extrema-direita de ideologia neo-nazi), ex-dirigente da Frente Nacional (um grupo neo-nazi, que surge a partir de dissidências do PNR), líder da Nova Ordem Social (uma organização desta vez política). Ah, e para além disto é um criminoso com um currículo invejável: já esteve preso várias vezes, cumprindo inclusivamente a maior pena em prisão de alta segurança desde o 25 de Abril, por crimes como sequestro, tortura, coação agravada, posse ilegal de arma, ofensa à integridade física, discriminação racial e envolvimento no assassinato de Alcindo Monteiro. Nada mal para um grunho, não?
Actualmente está em liberdade, portanto talvez fosse mais politicamente correcto da minha parte referir-me ao dito como ex-criminoso. Não foi ao acaso: ao contrário do que as vozes defensoras quer do grunho, quer do infeliz momento televisivo (porque não, nunca lhe poderemos chamar momento jornalístico - para isso, teria de ter sido conduzido por um jornalista e teria de existir real contraditório), eu recuso-me a separar as ideias das acções. São muitos a tentar fazê-lo, realçando que a liberdade de expressão é um direito que assiste a todos e a todas as ideologias, e para isso escolhem branquear o cadastro criminal do dito. Ora, as duas coisas estão longe de ser indissociáveis: o passado criminoso de Mário Machado existe precisamente por causa dos ideais que defende, e é precisamente isso que muita gente anda a querer mascarar.
O fascismo mata. Não é a história do fascismo, não são os exemplos da sua concretização práctica, é a própria ideologia, que na sua génese, defende a discriminação, a violência e o ódio. Um fascista nunca será mais que um grunho, melhor ou pior disfarçado. E se há coisa que 2018 nos revelou, é que havia demasiados fascistas enclausurados no armário. Eles revelam-se em muitas pequenas coisas, menos óbvias que as que já enumerei, porém: o choradinho pelos efeitos nefastos aumentos do salário mínimo, a persistência nos horários de trabalho desumanos, as relações laborais que se deterioram, por exemplo.
Todos nós temos pessoas destas ao lado. Estão na família, nas relações sociais, no trabalho. São aquele superior hierárquico que não tem pejo em apelidar-se de Deus perante os demais, por isso certamente mandatado para ordenar (e são sempre tão católicos!); aquele chefe que considera o salário de um trabalhador como um privilégio; aquele tio machista (mas que depois se vai a ver e não é só isso) que acha que a mulheres pertence à cozinha; aquele amigo que se julga muito superior aos restantes comuns mortais, não melhor, mas mais válido (que são coisas muito diferentes). São esses os piores fascistas, os que estão tão fundo dentro do armário, que nem sequer se reconhecem como tal e tentam a todo o custo convencer os demais (e a si próprios, naturalmente) de que o combatem. Na hora da verdade, são os primeiros a cavalgar a crista da onda.
Como se combate isto, então? Para ganhar o jogo, é preciso jogá-lo, e isso implica correr o risco de ser corrompido. Aqueles que ainda conservam princípios éticos e morais mostram-se cada vez mais renitentes em fazê-lo. Como se racionaliza o impensável, como se argumenta com quem procura determinantemente a boçalidade? Como disse, sou pessimista por natureza. Assim, tal só me parece possível duma forma: povoando o mundo com mais pessoas boas, decentes. Venham daí mais bebés (mas filhos de gente boa, por favor); perdoem-me, que isto é só o instinto maternal a começar a dar sinal.