Eu sei que vivemos tempos em que a ditadura do medo convida à inércia e ao conformismo. Sei que estamos habituados a deixar os “adultos” tomar conta da nossa vidinha, a (gostar de) não perceber nada de leis, a confiar nos “doutores” deste mundo, que munidos do seu fato e gravata, passam logo a perceber muito mais de toda e qualquer matéria que o resto dos comuns mortais. Mas já chega: urge repudiar o medo que nos instilam e fazer aquilo que estiver ao nosso alcance. Seja algo tão simples como associares-te a um sindicato, contribuir com perguntas e sugestões em reuniões por ele organizadas, ou principalmente, por recusar fazer parte de um mecanismo que agride toda uma classe profissional. A tua classe profissional. Quando te apresentarem este novo CCT, lembra-te que aderindo ao mesmo estás não só a prejudicar-te a ti mesmo, mas também a contribuir para dar força a uma estrutura cujo propósito é enriquecer à custa do trabalho de todos nós. Nós, os músicos, os artistas, os professores.
Quando te falarem em dificuldades de subsistência ou em custos incomportáveis com vencimentos, não te deixes enrolar: primeiro o trabalho dos professores numa escola nunca poderá ser considerado um custo, mas sim um investimento (não é apenas semântica, mas sim uma diferença ideológica vital ao desenvolvimento da Educação). Segundo, e mais relevante ainda, lembra-te que em muitos casos, há escassos 3 anos atrás as nossas escolas recebiam cerca de 900€ por aluno em formato reembolso e não nos pediam semelhante: como justificam então, agora com 2600€ por aluno e com a possibilidade de utilizar o dinheiro excedentário naquilo que forem as necessidades mais prementes de cada instituição, necessitar de tais “ajustes financeiros”? Duvido que alguma destas pessoas te consiga responder a esta pergunta, mas eu consigo: é que agora, com muito mais dinheiro envolvido, ninguém lhes pede para devolver o dinheiro quando não o gastam. Preciso de fazer um desenho?
Quando te falarem que isto só acontece porque o Governo decidiu cortar nos contratos associação com as escolas particulares e cooperativas, não vás em cantigas: estamos abrangidos pelo Ensino Particular e Cooperativo, sim, mas muitas das medidas inseridas neste CCT foram-no expressamente a pedido de algumas escolas do EAE. Não me vou pôr a discorrer acerca da pertinência e necessidade da renegociação de grande parte dos contratos associação. O que de facto importa é que não se responde a restrições de rendas estatais com chantagem de exploração dos professores. Os professores constroem a Escola, são a Escola, também. E não sejamos ingénuos: quantas escolas do EAE já fazem o agora previsto neste CCT há anos, sempre com total impunidade? Dispensam-se as lágrimas de crocodilo, por favor.
Quando te falarem que os sindicatos não são teus aliados e que estão apenas a usar as tuas preocupações para servir a sua agenda, aí manda-os para um sítio que eu cá sei. Com as falhas e as limitações que ambos sabemos que possuem, os sindicatos que estão a lutar pelos teus interesses. Mais: são os únicos que estão preocupados com o futuro a médio prazo deste ensino! Honra seja dada àquelas escolas que escolhem repudiar de forma pública e vinculativa este CCT! Não será posição fácil para este conjunto de pessoas em posição de chefia, no seio de associações que promovem o oposto. São por isso um oásis que merece respeito. Mas para os outros, a questão é óbvia: quem negligencia e prejudica de forma tão displicente os professores, não está minimamente preocupado em conseguir um Ensino de qualidade e com valor. Quem se serve de forma tão irregular de dinheiro público, e que por isso é de todos nós, e que, alegando ser manifestamente insuficiente, demonstra tantas dificuldades em comprová-lo, denuncia claramente ao que vem. Não são essas pessoas que vão pensar em ti. Podem até oferecer-te as atenuantes mais amáveis, promover o “diálogo” e a negociação individual em busca de condições mais favoráveis para ti. Mas tudo se resume a uma pergunta muito simples: se não pretendem aplicar o que vem disposto neste CCT, para que raio querem que tu o assines?
Eu sei que ainda carregamos o pesado fardo da subserviência proveniente de décadas sob um regime ditatorial em Portugal. Também sei que trabalhamos sob a alçada do Ensino Particular e Cooperativo, terra fértil para a selvajaria laboral que instiga cada vez mais os nossos diretores administrativos a tornarem-se “patrões” (mais uma vez, não é uma simples questão de semântica). Sei que por causa destes dois factores, pelo menos, a exploração cada vez mais evidente dos nossos direitos se apresenta como uma inevitabilidade impossível de combater. Mas saibamos não baixar os braços, não desistir, não baixar as calças! Resistir, hoje cada vez mais afincadamente, sabendo por onde se desenha a luta. Por alterar o paradigma vigente face aos sindicatos, abandonando esta atitude displicente de quem quer que lhe resolvam os problemas e reconhecendo que quem os faz somos todos e cada um de nós (com perguntas, com sugestões, com reuniões, com plenários, com inquéritos, com manifestações, com greves): só assim, unidos numa mesma causa, teremos a força necessária para travar esta pilhagem. E passa também por não ter medo de dar a cara, de se insurgir, de dizer NÃO nas nossas escolas, sempre que nos tentarem vergar a este atropelo dos nossos direitos e ao desmantelamento, lento mas tenaz, do nosso ensino. Lembra-te que não estás só a lutar por ti. Nem só pelos teus colegas de profissão. Estás a lutar também pelo futuro dos teus alunos: os que continuamente educas para ser um melhor ser humano e os que formas como músicos. A esses, seria bom deixar um mundo melhor do que aquele que te deixaram a ti.
18-11-17
Carta Aberta a um Professor do EAE – Parte 2
Meu caro colega de luta e resistência,
Dizia-te eu que se torna agora necessário perceber de forma mais exacta como podemos combater o nojo de CCT que para nós foi negociado. A FENPROF tem-se dedicado a esta causa de forma mais evidente nos últimos tempos, iniciando uma onda de contestação no passado dia 28 de Outubro, com a concentração em frente à CNEF e subsequente marcha até ao ME. Mas neste ponto, contestar é pouco. Há que combater, de forma declarada e igualmente agressiva, este atentado aos direitos que tão difíceis foram de adquirir. Para isso, vejo dois caminhos adiante que teremos de obrigatoriamente percorrer: um construído entre todos que vise chegar aos Ministérios que têm algo de decisivo a dizer acerca do que se passa (Ministério do Trabalho e Ministério da Educação); outro mais singular, que vise uma resistência tenaz a esta ofensiva no quotidiano de cada um.
No que toca ao primeiro caminho, vejo duas possibilidades conjuntas de o conseguir. Em primeiro lugar, urge clarificar que os sindicatos (os verdadeiros, aqueles que se recusaram a assinar este lixo) têm uma força negocial com o Ministério do Trabalho que se assume como uma valiosa ferramenta. No entanto, uma reunião em que estes não conseguem transmitir uma alternativa clara não adianta de nada. Assim, é preciso que todos ajudemos a construir essa alternativa: sugiro que comeces por promover reuniões de esclarecimento nas tuas escolas (que por lei não se podem negar a isso), para que daí saiam mais contribuições vindas de nós, e que faças por lá eleger delegados sindicais (o que implica teres a pequena coragem de te sindicalizares também). Estamos todos habituados a que tomem conta de nós, mas isso só acontece enquanto somos criancinhas. Basta de acusar a FENPROF de nada fazer, quando somos os primeiros a refugiarmo-nos na inércia. Os sindicatos, sejam eles quais forem, têm a força que tiverem os seus associados. Enquanto não estivermos dispostos a inspirar devagarinho a mudança no nosso próprio quotidiano, a mudança não acontece, ponto. A mudança constrói-se e somos nós os seus operários.
Depois, em relação à negociação com o Ministério da Educação: urge retirar poder a quem sistematicamente dele se tem servido para nos (tentar) explorar. Chegou a hora de finalmente criarmos uma Comissão de Professores do Ensino Artístico Especializado.Relembro que foi uma plataforma criada por professores que conseguiu que o ME voltasse a assegurar o financiamento público abrangido pelo Orçamento de Estado para todo o território nacional. Sim, juntos temos mais força do que achamos, e há muitos que independentemente da idade, do género, do percurso e da carreira, não se calam, não se vergam, não desistem e têm um contributo valioso para dar. Muitos têm relembrado que esta não é uma luta entre patrões e trabalhadores, entre entidades patronais e professores. Não é, de facto. Mas convém não esquecer que são estas pessoas, os nossos directores administrativos/executivos que conseguem através da sua massa associativa negociar com o ME os valores de financiamento. E o que mensagem pensas que lhe estão a transmitir, ao compactuar com um CCT que ao permitir a exploração dos professores, evidencia que é possível fazer o mesmo por menos dinheiro? Assume-se necessário, pelo menos na minha opinião, que os professores sejam ouvidos nestas negociações, uma vez que aqueles que nos representam não o têm conseguido fazer eficazmente. Para isso, precisamos de criar (e não será tão difícil assim, para artistas que todos nós somos) uma massa associativa com peso e representatividade suficientes para o fazer.
Falando agora do segundo caminho que todos temos de trilhar, relembro: somos todos livres. Cada um faz aquilo em que acredita e que considera ser o melhor para si. Por vezes, isso implica colocar de lado alguns princípios e valores que julgávamos irrevogáveis. Principalmente quando as escolhas que nos colocam são aceitar situações inaceitáveis e manter o posto de trabalho, ou não aceitar e arriscar perdê-lo. Mas há um dado que nós enquanto sociedade parecemos ter esquecido nestes últimos anos da Troika, perante esta retórica tão agressiva do “cada um por si”: somos responsáveis pelo próximo. Não podemos querer que alguém melhore a nossa actual situação laboral quando não estamos dispostos a contribuir com nada para que isso aconteça. Esta visão infantil dos sindicatos como uma entidade superior que cuida das nossas vidinhas miseráveis, é um logro: o sindicato somos nós, todos e cada um, que o construímos de muitas formas diferentes. Assim, se assumirmos que este CCT é ilegal por violar os princípios explanados na nossa Constituição (desculpem-me as almas mais sensíveis as palavras agressivas, chamem-lhe fulgor da juventude se quiserem), então precisamos de o provar com exemplos concretos, com denúncias a quem de direito. Aí sim, poderemos fazer aquilo que devia ter sido feito desde início: impugnar em tribunal este atentado contra os docentes do EPC.
(continua)
05-11-17
Carta Aberta a um Professor do EAE – Parte 1
Meu caro colega de luta e resistência,
Não vou começar com falinhas mansas; imagino que como eu, também não gostes de sóis tapados com peneiras. Eu, como tu, sou professora do Ensino Artístico Especializado e venho falar-te do ataque em curso aos nossos mais basilares direitos laborais. Foi negociado de forma muito pouco transparente e assinado sem reservas a 22 de Agosto deste ano um Contrato Colectivo de Trabalho para o sector, que reúne um conjunto de alterações significativas. Não vou dourar a pílula: essas alterações representam uma clara delapidação dos direitos laborais mais elementares da nossa classe profissional. Apesar de nos virem encher as páginas dos jornais com declarações sonantes, este “acordo histórico” só o é na medida em que representa a tentativa mais radical que já alguma vez vi de exploração dos docentes.
Não caias na cantiga dos sindicatos que o assinaram, que dizem que perante as dificuldades financeiras actuais, esta foi a melhor convenção colectiva possível. Aliás, sei bem que não são os únicos a propalar esta tentativa tão torpe de encobrimento das intenções que norteiam esta “negociação”. À medida que a contestação e a revolta sobem de tom, é ver várias pessoas a imiscuírem-se na discussão com a retórica de que o real problema é a falta de verbas disponíveis para as entidades patronais, que se vêem assim confrontadas com a necessidade de não providenciar condições laborais mais dignas. Vejo pessoas dizendo que com este modelo de financiamento as progressões na carreira são incomportáveis e que nessa medida, sim, este CCT foi o melhor compromisso possível com condições tão severas.
Uma das atitudes que temos de urgentemente deixar de perpetuar é precisamente esta: esta atitude benevolente perante aqueles que governam dinheiro que é público, e que portanto pertence a todos nós, de forma evidentemente dúbia (para dizer o menos) é infantil. Não podemos aceitar que um financiamento insuficiente seja motivo para nos arruinarem as mais elementares condições de trabalho, e certamente não de pessoas que são os únicos reais interlocutores com a fonte desse financiamento. Se são as entidades patronais as organizações mais habilitadas para conseguir um financiamento mais justo e equilibrado, na medida em que são exclusivamente elas que nos representam nas negociações com o ME, então há que assumir a responsabilidade de o fazer. E fazê-lo não é acordar um contrato coletivo que continue a permitir esse financiamento alegadamente deficitário.
São muitas as atrocidades que li neste CCT. Deram-me asco, provocaram-me náuseas reais. Mas consigo, ainda assim, diagnosticar 4 principais ataques à classe docente:
Um contrato colectivo que apoie uma contagem de tempo de serviço e progressão na carreira circunscrita apenas à escola actual dos docentes, não tem lugar numa sociedade democrática. A experiência profissional adquirida ao longo dos anos de trabalho não pode, de maneira alguma, estar subjugada à permanência numa só escola e sujeita à vigência de um contrato colectivo. A progressão na carreira deve acontecer de forma digna e justa, e não sustentada em mecanismos de obstrução à mesma;
Um contrato colectivo que permita a utilização da componente não-lectiva, tão necessária para desenvolver e aperfeiçoar mecanismos que promovam mais sucesso no processo de ensino-aprendizagem, como forma de cortar na despesa das instituições, deve ser fortemente combatido. Incluir atividades lectivas em componentes não-lectivas do horário semanal de trabalho, com recurso a teorias fabulatórias sobre que tipo de aulas se inserem melhor ou pior num contexto lectivo, tem de acabar;
Um contrato colectivo que continue a permitir uma visão empresarial do ensino, a roçar o ditatorial, não representa qualquer tipo de negociação. Basta de permitir que os horários de trabalho sejam usados como instrumentos de chantagem e de manipulação! O professor tem direito a um horário que também lhe permita ser cidadão e ser pessoa, com direito à sua vida pessoal e familiar;
Um contrato colectivo que aumente o horário de trabalho semanal sem um aumento correspondente da remuneração não é um contrato: é exploração. Todo o trabalho desenvolvido pelos professores constitui um serviço à sociedade, e como tal, não pode ser questionável ou negociável o seu direito a uma retribuição justa. Chega de engenharia financeira e de fórmulas matemáticas malabaristas: não existe justificação para que um professor tenha de trabalhar 29 horas (ou as que sejam) para receber 22.
Muito mais haveria para enumerar; as ignomínias são muitas, de natureza diversa e constantes ao longo de todo o CCT. Chegar a um ponto onde se obriga os docentes a “doar” (sim, porque doações obrigatórias já não têm nada de doado, como será óbvio) 0.5% do seu vencimento para a frente sindical que assinou este lixo, como se ao aderir (sabe-se lá com recurso a que formas de coação), estes docentes passassem a ser sócios honorários de um sindicato que prefere defender os interesses de uns poucos do que os seus! É notoriamente claro que este CCT ultrapassa todos os limites da razoabilidade e da decência, e não há que ter medo de “chamar os bois pelos nomes”: este CCT não serve, este CCT representa um abuso legitimado dos trabalhadores, este CCT é um nojo que tem de ser fortemente combatido. Resta agora perceber exactamente como.
(continua)
27-10-17
"Não há direitos adquiridos."
Há quem diga que o Mundo está a mudar, e demasiado rápido. Eu digo que já mudou e nós nem demos bem por isso. Podíamos falar das alterações climáticas, do avanço tecnológico desenfreado, das relações humanas caídas em desgraça, da competitividade dos mercados...as mudanças (já) são tantas que se tornam difíceis de enumerar. Eu gostaria de me centrar nas mudanças a que temos assistido naquilo que julgávamos ser direitos inquestionáveis. Os acontecimentos recentes, alguns deles profundamente trágicos, ilustram um pensamento que de tempos a tempos se atravessa nas minhas noites de insónia: está em curso uma campanha de delapidação dos nossos direitos. Falemos da crispação social em redor da Autoeuropa, falemos dos acontecimentos recentes na Catalunha, falemos dos 523 incêndios que a 15 de Outubro (sim, de Outubro!) devastaram Portugal.
Tempos houve em que o direito à greve era inviolável; neste momento está ameaçado. Concorde-se ou não com a posição da Comissão de Trabalhadores da Autoeuropa, o direito à greve destes trabalhadores não está à venda nem aberto a discussão. Julgar um conjunto de pessoas que lutam pelo que acreditam ser os seus direitos, tendo como termo de comparação a miséria laboral em que cada um vive, é um absurdo, um vírus pernicioso que infectou uma larga fatia da população. Sim, é uma potencial fragilidade económica: e então? Voltamos ao tempo dos sacrifícios humanos para agradar a deuses sem rosto? Apelar ao bom-senso e à ponderação é uma coisa; julgamentos na opinião pública, outra coisa bem distinta. Assim, tão recheados de nobres intenções e tendo em vista o bem comum, se vão destruindo lenta mas inexoravelmente direitos laborais que regulam as relações profissionais num mundo (cada vez mais) desregulado.
Não são só os direitos laborais que estão em causa: os próprios direitos inerentes a um Estado (que se quer) Democrático também estão na berlinda. Tempos houve em que o direito dos povos à auto-determinação se suplantava a qualquer rectificativo. Não sei o que pensar acerca da independência da Catalunha, mas não tenho dúvidas quanto a duas coisas: primeiro, de que os catalães têm o direito de avaliar entre si o que pretendem para si próprios. Segundo, que a manter-se a ilegalidade do referendo, havia outras soluções que não a tomada de uma posição de força. Assim, a postura de quem pretendia contrariar estas intenções, assumiu-se como uma coisa apenas: repressão. Em democracia não se manda retirar à força pessoas das urnas. Se isto já não representa consensualmente a imperatividade do bom-senso e da decência, então tudo o mais é passível de mudança e pode ruir. Viver em sociedade democrática não é fácil nem linear, mas há linhas tão claramente traçadas que não permitem ubiquidades: esta foi uma delas.
Quando estes direitos, tão vitais numa Sociedade (que se quer) Democrática se esfumam, o que resta, o que sobra? Sobram os mais elementares, alicerces de toda a existência em comunidade: o direito à vida, à segurança e à protecção. Foram estes os que vimos ser queimados na pira com os incêndios deste ano, culminando neste último Domingo. Todos os anos carpimos a mesma ladainha, é certo, mas nunca vi nada com estas proporções desde que nasci. Podia falar do alheamento da classe política, da falta de sensibilidade grosseira por parte dos representantes do Governo, das óbvias falhas a todo o comprimento que (mais uma vez) pudemos observar: não o farei. Prefiro (sempre) o dedo na ferida: o que causa este terrorismo doméstico? Recuso-me a ir na conversa dos números oficiais: há claramente interesses económicos e políticos na origem destes fogos. E, não fosse isso mau o suficiente, que conseguem colocar a descoberto as gritantes lacunas das estruturas que deviam garantir a nossa proteção. O enorme rasto da destruição deixada é irrelevante perante a ganância de uns poucos. A vida humana (não fossem também a vida animal e florestal motivo suficiente) já não vale nada para as elites que nos governam (e estou a referir-me aos verdadeiros donos disto tudo, não ao Governo).
Não podemos render-nos a continuar a permitir isto. Como diz tão bem Manel Cruz, "não há paz de mão beijada". Nós, a turba da plebe que se habituou (que se acomodou, também) ao estoicismo e ao fatalismo, temos de nos insurgir. Na História da Humanidade não existiram nunca direitos alienáveis: todos se conquistaram, todos tiveram origem na revolta e no romper da subserviência colectivos. Saibamos ver sem nevoeiro que é chegada a hora: de resistir, de contestar, de ir à luta.
18-10-17
Bem-aventurado o fim das autárquicas!
Agora que as eleições autárquicas já aconteceram, podemos todos retomar o sossego do quotidiano e arrumar (finalmente!) o espírito de claque na gaveta. Resfolego de contentamento ao pensar que em breve as minhas viagens para o trabalho deixarão de estar povoadas de cartazes com slogans medíocres (embora alguns tenham sido bem engraçados, durante as primeiras semanas). Suspiro de alívio ao pensar que o meu Facebook vai voltar a preencher-se de fotos de refeições ou outras futilidades que tais, em vez das dezenas de fotografias de comícios, jantares e arruadas. Tranquiliza-me saber que vou deixar de ouvir as mesmas vozes de forma latejante, seja na rádio, em debates ou em comícios. Eu, que nem religiosa sou, agradeço de mãos ao alto pela bem-aventurança de umas tréguas bem merecidas de todo este circo que se monta de 4 em 4 anos.
Fui acompanhando este clima de eleições de forma mais ou menos atenta, mais particular e interventivamente no concelho onde voto (na minha terra natal) e na cidade onde moro há pouco tempo. Percebi com estupefação que a norma é tratar o eleitorado como crianças, incapazes de acompanhar raciocínios demasiado elaborados ou outra coisa qualquer que não sejam festas de pulseiras, bandeiras, slogans e comida gratuita. Mais ou menos aquilo que se vê nas eleições das associações de estudantes das escolas. Parece coisa estranha, eu sei, mas perante tentativas declaradas de infantilizar os eleitores, com recurso às estratégias mais pueris e displicentes, esta conclusão é inescapável. Confesso que tenho bastante dificuldade em lidar com a irritação que em mim se agiganta quando me querem fazer de burra. Quando vejo candidatos às Câmaras Municipais que se dedicam a dar aquilo que o “povão” pede (o “senhor major” também dava frigoríficos e máquinas de lavar, não era?), sem a mínima preocupação com a exequibilidade daquilo que prometem, ao invés de tentar esclarecer as populações socorrendo-se daquilo que são as ideologias políticas dos seus partidos, só me consigo lembrar daqueles comportamentos típicos de mães a dar a sopa aos bebés enquanto os distraem com bonecada, aviões ou outras artimanhas.
Esta infantilização do eleitorado é uma das grandes causas da minha irritação, se bem que não a única. Bem sei que principalmente em vilas pequenas a tendência maioritária é ir ao encontro das populações, mesmo que evidenciem uma certa ignorância e um pensamento primário. Ainda assim, há limites para aquilo que se diz e que se faz: semear a confusão da opinião pública através da divulgação de informação falsa ou deturpada e andar a oferecer ou prometer brindes de campanha, é duma desonestidade intelectual gritante. Ao acompanhar mais de perto as campanhas nestes dois concelhos, pude comprovar que houve quem ousasse andar a prometer intervenções dentárias a pessoas notoriamente mais desfavorecidas! Isso, aliado a intervenções destinadas a fabricar uma empatia falseada para com pessoas socialmente mais desprotegidas (veja-se por exemplo aquela história de andar nos Metros de Lisboa e do Porto, gente que nunca lá pôs os pés antes) dá-me nojo. Mas os meandros da sordidez política das campanhas não se esgotam por aqui: acaso pensarão que somos tão burros que não nos apercebemos da hipocrisia das críticas a comportamentos que vão depois repetir? O que mais vi nestas campanhas foi um jogo de ténis soez, onde diferentes candidatos lançam entre si boladas repletas de baixeza política e até alguma vileza, para depois as verem devolvidas ao seu campo. Chega, meus senhores! Não vale andar a criticar as atitudes dos outros para depois fazer exactamente o mesmo ou pior!
Outro motivo para o meu descontentamento prende-se com a ausência completa de isenção política na comunicação social. Começando pelos jornais regionais, que se dedicam a publicitar os candidatos de que mais gostam e a crucificar os restantes (nalguns casos até menosprezando completamente candidaturas muito válidas mas que sabem não ter uma expressão tão significativa), e acabando nos grandes jornais nacionais, facilmente manietados para servir os interesses daqueles cujas ligações a instâncias mais elevadas permitem tal abuso, o comportamento daqueles que se queriam isentos é duma profunda grosseria. Não se pode, por exemplo, noticiar uma investigação em curso dando por adquirido a veracidade de factos que ainda não foram assim provados! Chama-se manipulação da opinião pública, chama-se usar o jornalismo ao serviço de interesses (mais ou menos) ocultos, chama-se ser desonesto. Um jornalista, ou um diretor de jornal, é livre de ter as suas inclinações ou mesmo filiações políticas; não pode é permitir que essas transpareçam naquilo que noticia e certamente não em plena campanha eleitoral.
Por último, o que mais me enervou nestas eleições autárquicas foi constatar o quanto ainda nos falta crescer enquanto democracia. Esta noção de que um executivo, seja ele camarário ou governativo, só tem viabilidade para governar quando tem uma maioria absoluta, é infantil, ridícula, simplista e acima de tudo, mentira! Já lá longe vão os tempos em que os partidos que não se posicionam no “centrão” eram considerados extremistas: extremistas são os que defendem o ódio e o preconceito, ponto. Tudo o mais acrescenta valor a um debate de ideias. Sim, porque ter de partilhar a gestão de um município com quem pensa diferente de nós é difícil, mas contribui para que essa gestão seja mais completa, justa e útil. Se de cada vez que se apresenta uma proposta esta for questionada, obriga a que a mesma tenha de ser muito melhor preparada, fundamentada e argumentada para conseguir que seja implementada, e isso a meu ver é algo que favorece a democracia. Esta coisa de fazer campanha limitando-se a criticar o executivo anterior sem desmontar as suas ideias, e sem apresentar soluções alternativas para os mesmos problemas apoiadas em visões ideológicas diferentes, não é campanha sequer: é só escárnio e maldizer. Revolta-me que não me reconheçam capacidade intelectual e crítica suficientes para conseguir balizar aquilo em que acredito e que defendo, e são raríssimos os candidatos que o fazem.
Será talvez ingénuo da minha parte, mas o que espero de um qualquer candidato a uma Câmara Municipal (ou às Juntas de Freguesia) é a defesa daquilo que são ideias concretas para melhorar a vida das pessoas, suportadas por uma ideologia política nítida e coerente. Ver candidatos do PSD ou CDS a defender a gratuitidade dos manuais escolares para toda a escolaridade obrigatória, apenas para dar um exemplo, é anedótico: para além de evidenciar uma certa displicência na forma como se encara a gestão financeira de um município, revela um desnorte ideológico face ao que estes partidos defenderam num passado recente a nível nacional. Não me venham com a treta do costume, ai que o importante são as pessoas e não os partidas neste tipo de eleições, que é mentira: a não ser que seja um candidato independente, estará sempre subjugado às diretrizes e hierarquias do partido, portanto a ideologia defendida pelo mesmo importa, e não é pouco! O grande problema é que muitas das pessoas que encabeçam estas listas não demonstram possuir nem valor intelectual, nem nobreza de princípios nem mérito ou competência para os cargos a que se candidatam. Porque lá estão, então? Eu percebo: a vista de cima do poleiro é muito mais gira.
02-10-17
Ser Professor.
Setembro é o mês do regresso às aulas em Portugal. Os hipermercados organizam campanhas megalómanas de venda de material escolar, as papelarias estão a abarrotar e fazem o lucro do ano inteiro, as ruas enchem-se de pessoas de mochila às costas, as cidades povoam-se de vozes, gritos e gargalhadas de crianças. É como se de uma Primavera se tratasse: os dias desabrocham com o retomar da rotina escolar. Talvez seja por isso que assuntos como a colocação de docentes ou a falta de pessoal não-docente nas escolas, passam a estar na ordem do dia: em Setembro a sociedade volta a recordar-se das crianças, e aí voltamos ruminar a displicência com que tratamos a Educação em Portugal. No meio do caos do arranque do ano letivo, é fácil perdermos a missão que escolhemos desempenhar no meio dos dossiês, dos formulários e dos relatórios. É sobre isso que hoje escrevo: sobre o que é ser Professor.
Ser Professor é enfrentar todos os dias um palco onde o improviso é uma constante, defronte de um público exigente e crítico. Os professores não sabem tudo, nem têm sempre razão, mas não podem deixar dúvidas por tirar. É vestir uma espécie de capa de super-herói e deixar em casa os medos, as tristezas e as preocupações. Quando abre a cortina (que é como quem diz, quando toca a campainha) recebem-se caras ensonadas e mal-humoradas com um sorriso amplo e o tempo ganha outros contornos. Mede-se em blocos de minutos, que se espremem na tentativa de estimular seres sencientes. Querem-se cérebros pensantes, que questionem e que critiquem, que não se acomodem ou conformem, cérebros coloridos de imaginação que não se percam no labirinto dos exercícios e das avaliações. Querem-se pessoas que fiquem crianças muito tempo, que não percam esse colorido nem o deslumbramento da descoberta.
Ser Professor é pegar na adversidade e dela fazer aprendizagem. Os professores trabalham cientes de que não têm poder para mudar o mundo, mas mesmo assim tentam-no, uma criança de cada vez. A aprendizagem não se mede em níveis e classificações, nem se encaixa em pequenas tabelas de critérios arbitrários. É antes uma mão cheia de pequenas vitórias que se sentem a dois: pode ser conseguir perceber uma fórmula ininteligível há um ano atrás, conseguir não ler mas sim ver a poesia, ou até saber que a escala de Ré Maior tem dois sustenidos. É lutar incessantemente por condições laborais dignas e justas, e mesmo assim não permitir que essa combatividade transborde para dentro da sala de aula. Aqui, quer-se calma e pousio que propiciem o diálogo e a partilha de ideias. Quer-se mais criatividade e menos condicionalismos, quer-se mais comunicação e menos transmissão. E nas confidências mais inusitadas, é saber abandonar a secretária e falar de olhos nos olhos, oferecendo colo mesmo a quem não o sabe pedir.
Ser Professor é emprestar o coração às crianças que nos entram na sala. Os professores vão assim lapidando um coração que não se esgota: é inevitável, eles partem e nós ficamos, e um pedacinho de nós parte com eles. Seremos talvez pequenos amuletos que os guardem na viagem. É ver nos olhos daquelas pequenas pessoas em potência a alegria do reencontro, e ler sem enleios que a nossa falta foi sentida. Os professores orientam sem direcionar, não pescam mas ensinam a pescar. Nem sempre é fácil, mas também há afeto nas correções e repreensões, as verdadeiras, feitas de igual para igual e sem recriminações. É amar (sim, porque não?) crianças que nos emprestam durante um curto espaço de tempo: limpamos joelhos e queixos esfolados, ouvimos queixas e mediamos conflitos, ouvimos confissões sussurradas, desbravamos frustrações com espadas imaginárias feitas de confiança que insuflamos em pequenos rostos de lábios trémulos e olhos de água.
Eu sei, ser Professor é terrivelmente difícil na maior parte do tempo e particularmente extenuante quando exige que nos privemos duma vida pessoal normal, com direito a lar, família presente, lazer e ócio, até. Consegue ainda ser exasperante quando nos atiram para os labirintos burocráticos em que tantos e tantos de nós se perdem de si próprios. Por isso, agora que Setembro já começou de mansinho, eu gosto de (me) relembrar: ser Professor não é uma coisa que se faça. Ser Professor é algo que se é.
Recentemente foi aprovada no Parlamento uma proposta do Bloco de Esquerda, visando facilitar o acesso ao RSI (Rendimento Social de Inserção) e a sua renovação. Essa aprovação causou polémica, uma vez que em teoria (e esta expressão é crucial) permite a atribuição do RSI a quem tenha um património de 25 000€ em bens móveis (como os carros, por exemplo). Logo se insurgiram os arautos da moralidade: tais medidas constituem um flagrante retrocesso social, uma vez que promovem a inércia, a preguiça, o comodismo, o parasitismo perante o Estado. Dizem eles que com as novas regras há um perigo latente de que os beneficiários deste subsídio o passem a encarar como “modo de vida”.
Vamos lá ver se nos entendemos: não é pobre quem quer! Uma formação pessoal deficitária, baixíssimos níveis de instrução, todo um historial de pobreza no seio familiar (para não enumerar coisas piores), transformam as pessoas. Vivendo permanentemente no limiar do desespero, o pior da natureza humana revela-se. Não me venham dizer que pessoas a sobreviver assim preferem uma mesada do Estado a ter de trabalhar: é uma mentira tão absurda que nela só podem acreditar aqueles que tiverem optado por desligar permanentemente o cérebro. Primeiro, porque a tal mesada é miserável e não garante nem as condições de existência mínimas, quanto mais a fantasia duma vida digna e ociosa; segundo, porque não há emprego. Eu sei, é um escândalo, mas de facto não há tantos empregos como nos querem fazer crer; nós é que somos estúpidos e gostamos muito do desfile do rei que vai nu. Continuamos cegos à evidência de que numa sociedade no apogeu da era tecnológica, milhares de postos de trabalho simplesmente deixaram de existir. Enquanto isso, somos cada vez mais a habitar este planeta. Não é possível esperar que o valor da vida humana continue a medir-se pela sua utilidade, porque há e haverá cada vez menos emprego. E por favor, não me façam falar da quantidade de “postos de trabalho” a que é insultuoso apelidar de tal, “empregos” onde os atropelos aos mais elementares direitos laborais são constantes, onde o trabalhador é tratado de forma descartável, onde se privilegia a mão-de-obra barata e subjugada em detrimento da experiência e do aperfeiçoamento de um ofício, que não deviam ser assim considerados sequer.
Uma vez retirado este lindo filtro, a forma eficiente como está montada a máquina destinada a humilhar os pobres e a torná-los cada vez menos humanos aos olhos dos restantes (aqueles que por terem alguma utilidade, se sentem com mais direito à vida), torna-se notoriamente evidente. Todas as engrenagens se revestem de um forte pendor ideológico e se destinam a perpetuar o ciclo da pobreza, não a quebrá-lo. Vejamos a apresentação quinzenal do desempregado nos Centros de Emprego (hoje felizmente suprimida), vejamos as supostas “formações” que lá lhe são facultadas ou as entrevistas constantes para postos de trabalho que nada têm que ver com o ofício desempenhado: tudo isto contribui para que qualquer pessoa que se veja numa situação de desemprego se sinta permanentemente um inútil e um indigente. E principalmente, para que todos os demais assim os vejam, reforçando o medo de vir a encarar tal cenário, que depois consegue assim legitimar uma progressiva desintegração das condições laborais da mais elementar justeza. É retorcido, mas não se pode dizer que não seja eficaz.
Há ainda outro aspeto que me irrita sobremaneira: não deixa de ser curioso como parecem causar mais contestação social as fraudes na atribuição deste subsídio, do que as fraudes de milhões no resgate à banca privada ou na fuga aos impostos das grandes corporações empresariais. Mas não são só as fraudes que irritam o português comum: ir à padaria e ver dois beneficiários deste subsídio a tomar o pequeno-almoço também parece ser motivo para questionar a sua validade. Só é pena que não passe pelas nossas cabecinhas que o valor médio do RSI por pessoa são apenas 112€, que 60‰ dos seus beneficiários sejam menores, reformados ou inválidos, e que mesmo aqueles com “bom corpo para trabalhar” talvez possam não conseguir emprego porque não o há, e não por preguiça, e que talvez aquele pequeno-almoço seja o único momento das suas existências em que se sentem como um cidadão “normal”. Tentemos passar ao lado da demagogia propagandeada pelo CDS, por exemplo, ao dizer que alguém com um carro (ou até um barco, veja-se lá!) no valor de 25 000€ vai passar a poder ser sustentado pelo Estado. Pegar nas regras introduzidas ou revistas e encontrar cenários hipotéticos para as ridicularizar, não vale, seus malandros. Basta uma breve pesquisa de Internet para perceber que os cenários apocalípticos descritos pelo líder parlamentar do CDS e outros não são mais que meras teorias fantasiosas que nunca aconteceram na vida real: analisando os números que são públicos relativos aos beneficiários do RSI, facilmente se percebe que a realidade nada tem a ver com a verborreia que nos entra pelos ouvidos. Eu sei que o nosso egoísmo latente torna isto muito difícil de perceber, mas somos todos responsáveis uns pelos outros. Eu sou responsável por quem aufere uma reforma miserável, por quem teve filhos sem ponderar as responsabilidades que lhe estão inerentes, por quem está tão fora de si que não quer trabalhar (e mesmo que quisesse, ninguém o permitiria), por quem passa as manhãs nas “formações” e as tardes no sofá a mamar minis, por quem tem património aparentemente substancial em bens móveis mas não tem uma única forma de rendimento (e nem sequer os consegue vender), por quem pega nos seus 112€ de RSI e vai todos os dias tomar o pequeno-almoço à pastelaria mais fina do sítio. Porque só seremos humanos, no mais elementar sentido da palavra, enquanto subsistir a nossa consciência social. Quando dermos por nós totalmente despojados dela já não seremos pessoas: seremos máquinas eficientes em requintadas linhas de montagem.
09-08-17
Eurovisão: Amar pelo Mundo inteiro
Este fim-de-semana foi mais uma ocasião histórica para Portugal: vencemos o festival da Eurovisão. Mas mais que isso, vencemos o festival da Eurovisão com uma balada, música simples composta sem pretensiosismos, sem efeitos especiais. Uma música bonita, bem executada e sem artifícios. Se isto não é histórico, não sei o que será. Num Mundo dominado pela cultura do descartável, do imediato, do facilitismo e do afunilamento cada vez mais presente da informação (e consequentemente da Cultura), ver uma música que estabelece uma clara clivagem com tudo isso ganhar um festival como a Eurovisão não é só lindo: é (quase) épico!
Se pensarmos nisso a fundo, chega a ser assumidamente fantástico, quase produto duma realidade alternativa: um país minúsculo, no centro das polémicas relacionadas com as políticas económicas da União Europeia, vem agora dar (mais) uma lição à Europa. Nós, meras formigas que se vergam diariamente ante o espezinhar destes gigantes europeus, de repente e com um arrojo que em nada nos é característico, vimos arrogantemente provar um ponto de vista revolucionário: música é para se ouvir e sentir, meus senhores! Pior, para o fazer tivemos antes que o provar a nós mesmos: esta vitória é suprema aprendizagem de que os julgamentos sumários de Facebook a algo que ainda não se teve tempo para sequer tentar compreender, precisam urgentemente de ser repensados e revertidos.
Nesta era em que tudo se passa cada vez mais rápido, de forma cada vez mais extremada e violenta, em que parece ter-se perdido a noção de que criticar uma manifestação artística (ou de qualquer outra natureza) não tem de passar por ofender o seu criador, em que a conectividade das redes sociais nos parece ter desligado uns dos outros e trazido assim cada vez mais solidão (não será por acaso que cresce exponencialmente o ódio), é profundamente revigorante ouvir uma música como a “Amar pelos Dois” ganhar o festival da Eurovisão. Foi uma “bofetada de luva branca” para todos os que olham a diferença, a inovação e acima de tudo, a franqueza, com tanta estranheza e desconfiança que lhe ganham ressentimento. Afinal, as massas que compõem o Mundo clamam pela simplicidade, pela honestidade! Nunca esperei viver para ver tal coisa.
Há que exaltar a coragem dos manos Sobral, em criar e cultivar uma música destas para levar a um ambiente tão inóspito e hostil como um festival da Canção. Mas há mais coragem a exaltar: tal nunca teria acontecido se a RTP não tivesse tomado a decisão, cirurgicamente pensada e repensada, imagino, de dar palco à música que hoje se faz em Portugal. Convém lembrar que partiu da RTP esta decisão de depositar na mão de músicos portugueses de hoje, que fazem boa música (porque gostos à parte, música boa é sempre música boa, mesmo que eu não goste) e que a sabem fazer melhor do que os produtores “pré-fabricados/embalados/mastigados” da música comercial que nos inunda a existência, a responsabilidade de nos representar neste contexto. Agrada-me que seja precisamente num contexto como a Eurovisão (durante tantos anos o epicentro da propalação duma cultura musical acéfala, primária e empobrecida) que finalmente se comece a antever uma viragem de ciclo, em que as pessoas reclamem a si aquilo que é intrinsecamente seu: a beleza. Não devíamos estar tão privados de beleza como presentemente estamos, e é um sinal de esperança ver tanto as massas como a intelligentia unidas no demarcar duma posição que a comece a reivindicar. Saber que, mesmo tendo tantas pessoas aqui em Portugal a desdenhar desta música e dos seus criadores (e quiçá, de tudo o que ela simboliza), há quem consiga ter confiança na sua mensagem para mesmo assim ir avante e transmiti-la, é profundamente inspirador. Afinal, as ovelhas negras podem estar certas. Mesmo que larga maioria do rebanho esteja a ir noutra direção. Se isto não é lindo, não sei o que será.
14-05-17
Sarampo: epidemia ou surto? Vacinas ou acupunctura?
Estalou nas últimas duas semanas um surto de sarampo em Portugal. Há jornais que lhe chamam uma epidemia, citando Francisco George (diretor da DGS – Direção-Geral de Saúde). Há jornais que falam em 26 casos de sarampo em títulos sonantes (para depois esclarecer que é desde o início de 2017 e que só 11 é que estão confirmados). “Será que a mãe ou o pai podem decidir da saúde em termos da proteção do seu filho? Temos de nos interrogar nós próprios. Eu diria que, em termos de boas práticas, todos os pais devem atender aos conselhos dos médicos e conselho emanados pela Direção Geral de Saúde no sentido, de logo depois do nascimento, iniciarem um programa nacional de vacinação que é gratuito, sem qualquer obstáculo.”, disse ele, segundo a notícia de 17/04/17 do Observador.
Bem sei que é assunto sensível: envolve crianças (pobres seres indefesos) e saúde pública (esse baluarte que legitima sistematicamente o afunilamento das liberdades individuais). Talvez por isso tenha desaparecido da imprensa nacional a ameaça eminente da 3ª Guerra Mundial, o drama da situação na Síria ou a possibilidade da criação de um campo de concentração para homossexuais na Chechénia, não sei. Mas o que me parece claramente abusivo é orientar a discussão pública para um sintoma do problema, em vez de a orientar para a raiz do mesmo. Parece-me completamente execrável crucificar uma minoria de pessoas por opções que tomaram baseadas na desconfiança que paira sobre as organizações de saúde (tanto a nível nacional como mundial), em vez de discutir de onde vem essa desconfiança! Lamento, mas sou obrigada a constatar que de facto há quem me queira fazer de estúpida, a mim e a todos.
Vamos por partes: segundo a Direção-Geral de Saúde, o plano nacional de vacinação para 2017 contém 13 vacinas. Se o quiserem conhecer em detalhe, podem simplesmente fazer a mesma pesquisa levezinha que eu, mas contém vacinas contra coisas como a tuberculose, a hepatite B, uma série de bactérias (causadores de coisas como meningite, pneumonia, entre outros), o tétano ou a poliomielite, e claro, a do sarampo. Este plano de vacinação é recomendado (e aqui a palavra-chave é o recomendado) pela DGS, que tem aplicado alterações e ajustes visando a sua eficácia. Segundo o relatório divulgado este ano, graças a ele já se conseguiu erradicar a varíola, eliminar a poliomielite, a difteria, o sarampo, a rubéola e o tétano neonatal, e controlar o tétano, a papeira, a meningite C, o influenza B, a tosse convulsa e a tuberculose. O próximo objetivo será ainda, controlar o cancro do colo do útero e a pneumonia.
São de facto indesmentíveis as vantagens que as vacinas conseguiram no controlo e erradicação de doenças que foram causadoras de uma elevada mortandade num passado muito recente. Mas não será por isso que não as podemos reflectir e questionar, principalmente à luz da notória instrumentalização de que têm sido alvo. Ora, quando leio centenas de pessoas a clamar por justiça, exigindo que se criminalize os pais que decidem não vacinar as suas crianças, confesso que me sobe o sangue à cabeça. Como se poderá algum dia criminalizar alguém por não fazer algo que não é obrigatório por lei?! Já repararam que cerca de 200 anos após a implementação das vacinas, elas permanecem como uma recomendação e não uma obrigação legal? Então deixemo-nos de hipocrisias e julgamentos precipitados e falemos do que é real: qualquer criança que queira ingressar numa escola do ensino oficial tem de apresentar o boletim de vacinas em dia. Portanto, acalmem-se lá os cruzados da saúde pública, preocupados que estão com o facto destas pessoas poderem comprometer a imunidade de grupo. Se é fácil contornar esta regra, então façamos com que não o seja, em vez de tentar coagir estes pais através do insulto e da ostracização.
Em segundo lugar, usar o drama familiar vivido por pessoas de carne e osso, pessoas reais que sofrem (principalmente aquelas que choram a morte duma filha), de forma tão claramente oportunista, isso sim, parece-me a mim criminoso. O único jornal que vi interessado em perceber quais são as motivações das pessoas que decidem não vacinar os filhos foi o Público, para ser logo de imediato trucidado pelos opinion-makers (e uma grande fatia da sociedade em geral) por algo que impulsivamente classificaram de “propalação de factos alternativos”. Não meus senhores, chama-se contraditório, chama-se tentar perceber o que afasta as pessoas de algo que à partida seria consensual, chama-se isenção jornalística. Não vi, no artigo em questão, nada que equiparasse as opiniões destas pessoas a factos científicos veiculados durante as últimas décadas (e digo-o assim, porque a Ciência tem um carácter anti-dogmático que convém não esquecer). Tudo o resto que li na imprensa preferiu dedicar-se a empolar a situação, essa sim criando factos alternativos!
Vejamos: a adolescente que morreu não era vacinada contra o sarampo por recomendação médica, devido a uma reação alérgica grave (de que podia resultar a sua morte) na primeira toma. Grande maioria dos jornais e revistas ou ignorou sumariamente este facto, ou relegou-o para 2º plano, quando se assume absolutamente crucial. Eu percebo: dizer que estes pais eram anti-vacinas vende muitos mais jornais. Outra coisa curiosa: larga maioria das publicações vinculou a informação de que o bebé infectado que deu origem ao surto não era vacinado, apressando-se a noticiar que a mãe seria anti-vacinas. Poucos se deram ao trabalho de explicar que o bebé tem 13 meses, e sendo que a primeira toma se dá aos 12 meses, se pode tratar simplesmente de um caso banalíssimo de atraso (como todos os dias há centenas!). A mãe da criança não prestou quaisquer declarações que suportassem esta tese; assim, que direito tem um jornal de incendiar a sociedade com informações que provavelmente serão completamente falsas?
Não tem nenhum direito, eis aqui o epicentro da minha irritação. Mas provavelmente terá algum interesse nisso: o mais óbvio será o de subir consideravelmente o número das vendas (e mais uma vez continuamos a assistir a um lento degenerar daquilo que já foi o jornalismo, não importa o que digam nos Congressos). Mas é legítimo questionar se esse interesse não será mais profundo, dado que a discussão se parece ter orientado muito eficazmente contra tudo o que não é a medicina ocidental. De repente, e sem que isso tenha nada a ver com o assunto em discussão, temos Portugal inteiro inflamado e revoltado contra a naturopatia, a homeopatia e sei lá mais o quê. Mas isto cabe na cabeça de alguém?! Como é que de um surto de sarampo passamos para a demonização de tudo o que são métodos medicinais alternativos, quando larga maioria são alicerçados na medicina oriental que, só por mero acaso, é milenar e antecede em muitos séculos a medicina ocidental?! Não vos vou maçar com dados estatísticos, estudos e afins que provem os benefícios que esta comporta, porque fazê-lo seria alimentar uma discussão que nem sequer vem ao caso. Deixem-me pôr o dedo na ferida: estamos a discutir um surto (sim, recuso-me a chamar-lhe epidemia) de sarampo! Estamos a discutir o plano nacional de vacinas, estamos a discutir a desconfiança que cada vez mais as pessoas têm no mesmo, estamos a discutir de que forma se pode ultrapassar estes problemas. Não devíamos estar a discutir a pluralidade de opiniões, visões e de formas de estar na vida, muito menos a ostracizá-las.
Por isso, e para responder à pergunta que coloca Francisco George, sim, os pais devem poder decidir da saúde dos seus filhos. Tal não legitima que descurem as recomendações dos profissionais de saúde, obviamente mais habilitados para avaliar a sua pertinência. Mas enquanto a indústria farmacêutica ainda tiver no bolso as organizações de saúde, enquanto a Direção-Geral de Saúde, concretamente, não se esforçar por se desvincular desta promiscuidade entre médicos e grandes multinacionais farmacêuticas, em suma, enquanto a Saúde ainda permanecer um negócio, é mais que válido que os pais tenham uma palavra a dizer. Sem que isso implique a sua crucificação em praça pública.
22-04-17
'EU AVISEI-TE!' (ou a descrição de um conflito geracional)
Esta é a semana de spring break que importamos directamente dos EUA há...20 anos atrás, será isso? Confesso que as mais recentes manchetes da imprensa nacional me pareceram o mote perfeito para abordar um tema em que tenho pensado recorrentemente: somos uma geração de merda. Para começar, permitam-me que vos tire desse púlpito de onde têm estado a julgar estes miúdos que foram expulsos do hotel em Torremolinos (sim, vocês que como eu ainda não têm 30 anos): somos todos da mesma geração (centennials, geração Y, you name it). É, eu sei, também fiquei estarrecida, quase tanto como o outro com o arquivamento do caso BPN. Sinto sempre um não-sei-quê de um amusement sobranceiro quando sou confrontada com críticas (agressivas até, às vezes) aos miúdos de hoje, principalmente quando provêm de pessoas como eu, meaning, com apenas mais 10 anos ou nem isso. Se assumirmos que uma grande parte da aprendizagem ocorre por modelagem, é válido afirmar-se que os verdadeiros culpados disto tudo somos nós todos, os que vieram antes. Sim, estou até a englobar os millennials que geracionalmente me antecedem, porque são esses os pais destes miúdos desordeiros.
Quando lhes criticarem a fraca capacidade de trabalho, a limitada resiliência e a desonestidade intelectual, lembrem-se de quem lhes ensinou a focar-se unicamente num resultado final que pareça fabuloso, mesmo que não seja mais do que castelo de cartas. Fomos nós que lhes demonstramos que era mais fácil viver intercalando subsídios de desemprego com empregos temporários, e quem lhes provou que copiar para conseguir manter médias brilhantes era solução igualmente válida. Somos nós que continuamente os desresponsabilizamos perante os problemas, arranjando outros culpados; somos nós que lhes vamos retirando autonomia e auto-estima, ao desempenhar as suas tarefas por eles para que sejam menos imperfeitas.
Quando lhes criticarem a linguagem, recheada de calão, abreviaturas, neologismos e estrangeirismos, lembrem-se de quem lhes pintou os bons hábitos de leitura como sintoma de vida social inexistente e enfadonha, ou de quem lhes afunilou o vocabulário. Quando falamos com um bebé usando palavras duma qualquer linguagem infantilizada que inventamos (“Come a chicha toda! Viste o au-au?”), instantaneamente lhe limitamos a sua capacidade de aprender vocabulário, ainda para mais numa idade em que o cérebro é exímio a fazê-lo como em nenhuma outra. Quando nunca corrigimos a criança quando fala mal (seja em erros de pronúncia, seja em incorreções gramaticais), ou quando procuramos utilizar só palavras que elas conheçam, estamos activamente a afunilar o seu horizonte linguístico. Quando permitimos a um filho pré-adolescente que comunique usando calão mas sem lhe exigir que mantenha hábitos de leitura para contrabalançar, estamos a ser negligentes (e não, não é na sua formação académica mas sim na formação do seu carácter).
Quando criticarem a construção cada vez mais narcisista e egocêntrica das suas personalidades, alicerçadas numa forma selfistíca (olha, lá está de novo, aquela coisa dos neologismos e estrangeirismos!) de olhar o Mundo apenas através da lente de um telemóvel, lembrem-se de quem lhes ensinou que as redes sociais aproximam pessoas, que a vida é sempre um dia solarengo recheado de arco-íris, que somos todos super únicos, super especiais, super importantes. Que legitimidade tenho eu para apontar estes perigos na formação de carácter a um adolescente, quando estou constantemente a partilhar fotos de poses em frente ao espelho, quando encho o meu Facebook não de partilhas de artigos e de eventos culturais, mas antes de selfies com bocas e olhares pseudo-lascivos? É, quem tem telhados de vidro e essa coisa toda.
Quando criticarem a promiscuidade dos adolescentes de hoje, lembrem-se de quem é que dissociou a sexualidade dos afectos, abordando-a cada vez mais prematuramente e duma forma puramente fisiológica. Fomos nós que enchemos a televisão de programas cada vez mais sexualizados e que lhe retiramos a decência; fomos nós que incluímos nas escolas uma Educação Sexual amorfa, desconexa e desumanizada; fomos nós promovemos a emancipação do sexo casual, não como procura de conexão com o outro mas antes como forma de satisfazer uma necessidade fisiológica. E estamos agora muito chocados porque os jovens de hoje não procuram relacionamentos duradouros, porque são promíscuos e inconscientes dos perigos associados a essa promiscuidade? Santa hipocrisia.
Finalmente, quando lhes criticarem os comportamentos desviantes, julgando-os como bêbados desordeiros, como vândalos sem moral ou boa-educação, como preguiçosos que só querem festa all night long, pensemos primeiro na forma como os ensinamos a divertir-se, a beber, a dançar, a ouvir música, ou mais importante que tudo isso, a relacionar-se. Fomos nós que chegamos a permitir o consumo de álcool a miúdos de 16 anos, recusando todas as evidências científicas que explicam o risco deste consumo quando o cérebro ainda se encontra em formação. Somos nós que continuamos a promover festas que se transformam em autênticos aterros a céu aberto, com lixo por toda a parte e gente a vomitar (entre outras coisas) em cada canto. Ó p’ra nós, tão modernos que somos, que fazemos Noites Brancas e romarias dos Santos Populares, atraindo a juventude a barracas de cerveja barata onde oferecem brindes se comprarmos quantidades maiores, aglomerando-os em largos recheados de uma “música” que não faz mais que acentuar a primitividade de tudo isto. Tudo isto para dizer, a vocês millennials que têm preenchido as páginas de tudo quanto é publicação em Portugal, ou centennials como eu que se erguem no alto duma superioridade moral que não possuímos, que não adianta absolutamente nada continuarmos a apontar o dedo a estes jovens. O Mundo não muda com as tuas palavras, mas sim com o teu exemplo (já me chegou a dizer o Facebook, por isso deve ser mesmo verdade). Querem que os miúdos de hoje deixem de ser zombies incapazes de viver sem estar ligados à(s) máquina(s), seres humanos com uma visível incapacidade em se relacionar, com tão grandes lacunas de empatia, gente sem qualquer réstia de nervo ou de espinha dorsal, disformes na forma como não se julgam capazes de fazer nada que tenha mérito seu, pessoas tão vazias e tão infelizes que tudo o que mais anseiam é violência de uma (qualquer) emoção? Fácil: comecemos por nos tornar melhores exemplos.
12-04-17
Da intimidade e outros demónios
Diz-se por aí que uma relação onde não exista intimidade, não resulta. Proclamam-se com autoridade motivos para o lento (mas porventura inexorável?) desgaste desse quê que parece ser facilmente almejável e conquistável no início de qualquer relação. Descrevem-se comportamentos que possam talvez reverter esse cenário tão comum. Toda uma geração de casais pós-milénio vive aterrorizada com um fracasso inescapável das suas relações amorosas. Dei-me conta que este é um tema do qual não falo muito, apesar de gostar particularmente de escrutinar estas minúcias no meu tempo livre. Estarei muito longe de ser considerada uma autoridade na matéria, mas a verdade é que me apraz tentar descrever o que será isto de tentar partilhar uma verdadeira intimidade.
Para mim intimidade é saber exactamente o que o outro gosta ao pequeno-almoço: se pão com manteiga ou se torradas, leite com cereais ou papas de aveia, se a coisa mais ao despachada, se um brunch prolongado. Mesmo que cada um faça o seu, e em tempos distintos. É saber só através de um relance que o café não lhe está a cair bem e que virá dali uma valente dor de estômago, ou saber sem margem para dúvidas como se gosta do arroz, se mais cozido se mais al dente, e partilhar sorrisos envergonhados quando não se consegue que saia como o esperado. É conseguir intuir sem quaisquer erros de cálculo que aquela má-disposição toda se deve única e exclusivamente a uma fome latejante que se relega para segundo plano no meio da azáfama do quotidiano, e oferecer tréguas não com ramos de oliveira mas com quadradinhos de chocolate. Intimidade é sair sempre mais cedo da cama para ir buscar pão quentinho, e saber se o outro vai preferir os mais tostados ou aqueles que ainda vêm mal cozidos. É sorrir sub-repticiamente (sim, porque não convém que se dê conta) quando o outro está distraído a falar ao almoço e não dá conta que está a fazer bolinhas com o miolo do pão. E depois é comer as côdeas que sobram, porque se sabe que o outro não gosta. Ou então conseguir adivinhar com exactidão o que o outro vai querer jantar depois de um daqueles dias verdadeiramente extenuantes, seja algo tão banal como uma canja ou algo menos comum como quesadillas com guacamole. Intimidade é saber que o outro é desajeitado a mexer em facas, e pairar discretamente sempre que decide cortar uma cebola ou abrir um pacote de molho de tomate, não vá o diabo tecê-las.
Mas intimidade não se conquista só através do estômago (embora possa assegurar que é componente bem relevante)! É também olhar bem pelos olhos dentro e saber que estão vermelhos de choro, ou então conseguir perceber num lábio trémulo que há dores que não se conseguem conter durante muito mais tempo. E aí, saber que o abandono de um abraço apertado pode voltar a compassar um coração descompassado, nem que para isso seja necessário uma centena de tentativas. É saber ler expressões faciais como se falassem: uma sobrancelha levantada é nítida descrença, dois olhos a dardejar e os lábios entreabertos são pura lascívia, dentes a ranger é fúria (mal) contida, olhar sobranceiro e nariz empinado são arrogância irreflectida, língua a espreitar entredentes é malícia e beicinho é cândida mimalhice. E principalmente, é saber como se apazigua qualquer uma delas; se com um afago no rosto, se com um beijo atrevido, talvez um entrelaçar firme das mãos, ou um sorriso daqueles que contagiam. Diz-se por aí que intimidade é saber partilhar e saber comunicar. Pois eu digo que intimidade é saber os segredos mais inconfessáveis um do outro sem palavras: nos olhares mais inconsolados, nos suspiros mais resignados ou no conforto dos muitos silêncios partilhados. É saber exactamente como semear sorrisos ou provocar genuínas gargalhadas, mesmo (talvez principalmente) nas coisas mais corriqueiras e banais.
Intimidade é ir colocar uma botija bem quente debaixo dos lençóis, porque se sabe que o outro gosta duma cama quentinha mas que tem demasiada preguiça a altas horas da noite para ir aquecer a água, ou então deixar o pijama a aquecer em cima do aquecedor, para que não tenha que adormecer a tiritar de frio. Em época de calor e festa, é passar por casa a correr para abrir as janelas e arejar tudo, para que o regressar a casa seja abandono confortável da consciência. É saber que o outro só consegue adormecer em posição fetal, e que se por acaso estiver noutra posição qualquer é porque está com dores (ou calores): nada que uns afagos não resolvam! Intimidade é deixar que o próprio braço se invada de formigueiros, para poder sustentar uma conchinha até que a respiração do outro se afunde num sono profundo, dure isso o tempo que durar. É apreciar a beleza dos lentos despertares, e poder andar de pijama com cabelos ainda com o cheiro do sono lá preso todo o dia. Intimidade é não gostar de gatos e mesmo assim aturar noites de cio interminável, viagens-relâmpago ao supermercado atrás da ração que só-há-naquele, partilhas tórridas de espaço condicionado e invasões declaradas do domínio privado. É saber quando a falta de mar se torna intolerável ou quando planear uma fuga se torna indispensável, ou saber exactamente como arrancar o outro daquele torpor que insiste e resiste. Não há receitas, nisso todos os (supostos) especialistas são consensuais. Mas o que sei é que construir uma verdadeira intimidade com alguém é empreitada megalómana, uma coisa indistinta que se constrói na rotina de todos os dias naqueles pequenos nadas que parecem ser insignificantes. Dá trabalho para caraças, e o resto é treta. Intimidade é oferecer o que se é sem pudores, sem máscaras ou adornos, sem o mais ínfimo dos enleios. E só assim dois são um.
Componente não lectiva (ou como enriquecer uma escola)
O título é elucidativo, explica-se a si próprio. No momento actual, e principalmente no ensino particular e cooperativo, a componente não lectiva do horário de trabalho semanal de um professor representa uma possibilidade para a entidade patronal amealhar dinheiro com o desempenho de funções “alternativas” de forma completamente gratuita. Isto é uma afirmação perigosíssima de se fazer: virão já certamente os doutos defensores das entidades patronais, alegando que trabalhar 22 horas quando o resto do país trabalha 35 ou 40 horas, nada tem de justo. Que quem gere os estabelecimentos de ensino precisaria assim de contratar muito mais pessoas para suprir as suas reais necessidades, ficando assim “a perder” neste braço-de-ferro. A mim só me ocorre perguntar: e então?
Tradicionalmente, a profissão docente sempre foi considerada como uma profissão de “desgaste rápido”, porque o é de facto, principalmente duma perspectiva emocional. Por esse motivo, e por ser mais que óbvio e inquestionável que os professores sempre tiveram um volume de trabalho “extra-aulas” muito acentuado, tradicionalmente realizado no seu tempo pessoal, nunca se olhou com a desconfiança e o desprezo actuais para um horário de trabalho semanal mais “reduzido”, quando comparados com a norma. Se para suprir as necessidades das escolas se assumisse necessário contratar mais professores, então que assim fosse, que o país precisa é de diminuir os índices de desemprego. Actualmente todos os professores compreendem que as coisas mudaram, e que agora o seu horário de trabalho semanal corresponde a 35 horas, divididas entre uma componente lectiva (as aulas propriamente ditas) e outra não lectiva, que por sua vez se divide entre tempo individual e tempo de trabalho no estabelecimento. Quiçá por ter crescido com o modelo anterior, observando os abusos que potenciava no ensino, e por me ter formado já com este novo modelo, não posso dizer que discorde. No entanto, gostava de me focar na aplicação disto mesmo à situação concreta do Ensino Artístico Especializado, que infelizmente conheço bem.
Este ensino, o meu ensino, estrutura-se de forma mesmo muito particular, pois para além do tempo para reuniões (de toda a ordem e natureza) em horário extra-lectivo que qualquer ensino comporta, fazemos ainda um sem número de concertos, audições, workshops e masterclasses, e ensaios que os suportem. Tudo isto fora do período de horário lectivo. É seguro por isso dizer-se que um professor do Ensino Artístico Especializado nem sequer pode questionar a realização da componente não lectiva do seu horário: já a faz, sempre a fez (os minimamente dedicados, entenda-se). Aquilo a que temos assistido nos últimos anos, que se agudizou significativamente aquando da publicação (e consequente imposição por parte de muitas escolas, nem interessa muito perceber como e a troco de quê) de um novo Contrato Colectivo de Trabalho (a meu ver, completamente ilegítimo, uma vez que foi assinado entre a AEEP – Associação de Escolas de Ensino Particular e Cooperativo e a frente sindical com menos representatividade do sector – a FNE), é a um sistemático abuso desta componente do horário. Regressando ao título desta publicação, neste momento e neste sector, a componente não lectiva é por muitas escolas (só não digo a maioria para não ser acusada de ser radical) usada de forma abusiva para enriquecer as próprias, e claro, à custa do salário dos professores (trabalhadores, perdão). De que forma? Eu explico: recorrendo a uma cláusula do CCT para imputar mais aulas (que se organizam em blocos de 45 minutos) a um horário de 22 horas (sei de casos onde um professor tem de dar 27 aulas para poder receber a remuneração base de um horário completo – 22 horas); obliterando a figura do pianista acompanhador enquanto se imputa essa função às componentes não lectivas dos professores de piano; ministrando aulas de estudo acompanhado, ou mesmo do curso de iniciação, usando o mesmo tipo de artifícios com professores de todos os instrumentos; marcando nos horários a totalidade desta componente e mesmo assim exigindo a presença dos professores em actividades fora desses horários (nem sequer as contabilizando); atribuindo-lhe tarefas administrativas ou logísticas de modo a suprir as necessidades causadas pela falta de pessoal não-docente; e por último mas não menos importante, manuseando a aprovação das tarefas propostas pelo professor como instrumento de pressão e coação.
Importa dizer que tudo isto viola o CCT, mas que como este é ambíguo ou omisso em tantos aspectos, dá azo a este tipo de “interpretações”. Importa dizer que todas estas medidas poupam uns milhares ao fim de cada ano lectivo: basta pensar quantas pessoas se teriam de contratar para cumprir estas funções “como manda a lei”. É legítimo então que se possa afirmar com propriedade que recorrendo a estas manobras se consegue imputar mais trabalho (inclusive lectivo!) a um professor, sem que este tenha um aumento de salário correspondente. E nessa medida, sim, estamos a permitir que as escolas acumulem dinheiro à conta do salário que não pagam aos professores (trabalhadores, perdão). Numa altura em que tanto se fala da precariedade, eu pergunto: não é isto precariedade?! Há premissas que sustentam esta instrumentalização da componente não lectiva que eu gostaria de rebater: primeiro, de que o professor é um custo da escola; segundo, de que uma escola particular tem de dar lucro. Vamos lá ver se nos entendemos: um professor (ou funcionário, já agora) não representa um custo para a entidade patronal, é sim um investimento! Porque são os professores e os funcionários que fazem a escola, que operam diariamente para a fazer atingir os seus resultados. Sem professores, não existiam cursos, ou alunos, ou a própria escola. São as máquinas da fábrica que concretiza os produtos (já que parece que hoje em dia as pessoas só entendem estas coisas com recursos a analogias fabris). Nunca o valor que se paga pelo trabalho de um professor pode ser encarado duma perspectiva mercantil, sob pena de se estar a desvirtuar completamente aquilo que representa a educação. Por outro lado, tenho uma má notícia: não é suposto que as escolas dêem lucro, assim como os hospitais por exemplo, meus senhores. A Educação não pode ser um negócio, tal como não o pode ser a Saúde (sim eu sei, ó doce ingenuidade). Se me falarem em sustentabilidade, aí estou totalmente de acordo. Mas que não se confunda a optimização de recursos ou a procura por uma maior eficiência financeira com a tentativa de acumular riqueza! Tudo o que viola a regulamentação do sector, bem como o código deontológico da profissão transcende largamente o propósito da sustentabilidade económica destas escolas, e de qualquer modo, os fins não justificam os meios. Atenção, mais uma vez reitero que não sou contra a realização duma componente não lectiva do horário no estabelecimento, sobre cuidadosa supervisão das entidades patronais. Mas uma que exista para aquilo que foi efectivamente criada: a concretização dos projectos educativos das escolas e o sucesso da aprendizagem dos nossos alunos, sem que tal prejudique as condições de trabalho daqueles que a operacionalizam. Se, até este dia chegar (refiro-me àquele em que vamos ter, no ensino particular e cooperativo mais directores e menos patrões), vos continuarem a impôr coisas tão abjectas como as que aqui descrevi, tenho uma sugestão: digam que não. Recusem, sejam teimosos, sejam combativos, esperneiem com todas as vossas forças. Eu conheço de perto os riscos, todos os sentimos. Mas não podemos continuar a permitir estes atropelos à nossa integridade ética e moral, não podemos continuar a permitir que todo o sector definhe lentamente pela profunda exaustão que isto provoca. Façam como se de um aluno se tratasse: expliquem com calma, devagarinho, sem grandes exaltamentos, mas sejam assertivos e explícitos. Respondam que “não é não”.
19-02-17
Feliz Ano Novo!
Feliz Ano Novo! Boas entradas! Bom ano 2017! É tanto optimismo pelas ruas que se torna enternecedor, até para um coração empedernido como o meu. Não deixa de ser curioso como na vertigem de um novo ano, larga maioria das pessoas o enfrenta com renovada esperança, mesmo que o anterior tenha sido um autêntico nojo. Se isto fosse um vírus, eu estaria neste momento contagiada, completamente imbuída do espírito renovador de quem quer construir a mudança. Assim, gostava de deixar uma sugestão de possíveis resoluções de ano novo, uma que de facto fizesse a diferença.
A nível macro, gostaria que tomássemos a decisão de incitar nos EUA o abandono do seu espírito imperialista (travestido de um “nacionalismo” putrefacto, que infelizmente já se está a alastrar para o Velho Continente). Talvez se parássemos de permitir a invasão de outros países para lhes usurpar a exploração de petróleo, iniciando assim um percurso de lenta monopolização do sector, deixássemos de assistir a cada vez mais conflitos no Médio Oriente, que se alastram depois de forma perniciosa. Talvez deixássemos também de estar subjugados aos interesses das grandes companhias petrolíferas, que dominam neste momento muitos (demais) aspectos das nossas vidas. Um deles, também bastante importante de se renovar, seria assumir a necessidade de reverter este caminho de destruição massiva do nosso planeta. Para 2017, desejo que paremos de fingir que as alterações climáticas não vão ter (ainda mais) efeitos a curto prazo. É inconcebível que se continuem a propalar mentiras acerca deste assunto, ou que continuemos a fingir que nelas acreditamos: ao ceder a estes grandes interesses instalados, estamos a destruir cada vez mais rapidamente o planeta que nos acolhe, a ponto de o deixar irreconhecível. Não são só os animaizinhos extintos, são ecossistemas inteiros e que nos vão lentamente intoxicar até à nossa própria extinção.
Talvez para conseguir levar à práctica estas duas resoluções tenhamos de ir um pouco mais longe: desejo do fundo do coração que em 2017 abandonemos de vez o caminho do capitalismo como o único caminho económico possível, e que desprezemos este neoliberalismo alucinado pela violência que representa. Se vivermos num mundo onde o objectivo da existência se resume ao acumular de riqueza, vivemos num mundo muito pobre, lamento dizê-lo. Esta ideia de que é cada um por si, de que não temos uma responsabilidade social e comunitária perante o outro, e que devemos lutar por enriquecer o mais possível na tentativa de comprar poder e assim enriquecer cada vez mais, é totalmente imoral. Seria por isso importante deixar de confundir ganância com ambição em 2017, e procurar outras respostas e soluções para as questões de sempre. Não seria bom viver num Mundo que não fosse comandado por margens de lucro, por mercados invisíveis que governam as nossas vidas de forma terrorista, por um consumismo desenfreado que esgota recursos naturais e humanos? Entendo que não seja fácil pensar num Mundo diferente, onde o dinheiro é relegado apenas para a função que nasceu para cumprir: afinal, eu já nasci num Mundo onde os electrodomésticos são programados para falhar ao fim de 2 anos (instilando à compra de novos), onde o último modelo (de carros, de telemóveis, de IPad’s, de computadores, de tudo, enfim) é sempre melhor e mais necessário, onde as coisas são substituídas quando avariam, em vez de serem compostas.
Talvez para conseguirmos tudo isto tenhamos de ir ainda mais fundo,: a nível micro, alterar a realidade de cada um. Começar por recusar esta actual escravatura laboral como forma de vida assume-se urgente. Com nações a começar a legislar no sentido de tornar aceitável a recusa em trabalhar fora do horário previsto para tal, o Mundo parece estar a acordar para o flagelo que representa a anulação do ser humano em prol do ser trabalhador. Desejo para 2017 que deixemos de medir a vida em índices de produtividade, e de estar permanentemente subjugados a tal. Quiçá consigamos assim regressar a um modelo de interação intrapessoal mais humano, assente em princípios e valores que entretanto se perderam. Desejo então que consigamos rejeitar as redes sociais como única forma de interação humana, como forma de sublimação das frustrações mais íntimas ou como escape a realidades muitas vezes agressoras. Consigo acreditar que um Mundo onde as pessoas vivem mais e melhor, onde convivem umas com as outras de forma salutar, é um mundo onde todas estas coisas tão nocivas são veementemente rejeitadas e combatidas, onde o sentido crítico e o espírito comunitário de cada um não permitiriam que atrocidades como as que hoje assistimos, tivessem lugar. Talvez no dia em que consigamos tudo isto, teremos um Mundo verdadeiramente melhor, preenchido de pessoas que acrescentam valor, humanas na acepção mais básica da palavra.