Donald Trump é o Presidente dos Estados Unidos da América. O mundo acordou chocado na manhã do passado dia 9, atónito com a constatação óbvia de que nos encaminhamos para o abismo. Eu, que sempre acreditei que tal não seria possível, fiquei incrédula com o resultado: na minha ingenuidade nunca julguei que tal cenário pudesse mesmo acontecer. Já o devia saber: a estupidez e a maldade humanas não conhecem limites. E pensei que não podia haver nada pior que isso: enganei-me. O que me tem dado a volta aos intestinos não tem sido a forma como Trump está já a trabalhar para concretizar as visões profundamente terríveis que tem do mundo, mas sim o spin intrincadamente elaborado que se tem realizado no pós-resultados eleitorais. E vai-se a ver, a culpa de Trump ter sido eleito foi das políticas (e políticos) de esquerda deste mundo!
Nestes poucos dias que se seguiram às eleições, a imprensa internacional tem revertido o seu discurso antes furiosamente anti-Trump: agora um pouco por todo o lado vemos florescer discursos que o normalizam, que o mostram menos aberrante e mais capaz do que alguma vez na vida ele se apresentou. E que desculpam desolados as pessoas que o elegeram: são pobres descontentes com o sistema, que lhes nega recorrentemente um debate. Como não esperar outra coisa senão a revolta das massas, implodindo assim a(s) democracia(s)? Esta linha de pensamento que prolifera aponta enraivecida o dedo à esquerda política: se ao menos não recusassem o debate com os defensores do discurso do ódio, se ao menos oferecessem às pessoas alternativas concretas que lhes solucionassem as vidas miseráveis, se não se erguessem arrogantemente do alto duma suposta superioridade moral que faz as pessoas sentirem-se estúpidas, nada disto teria sido possível. Então estes anormais a tresandar a um bolorento fascismo podem insultar quem quiserem e da maneira que melhor lhes aprouver, podem ser os maiores broncos à face da Terra, podem ser das pessoas mais ignóbeis que este século já produziu, e a malta que pensa mais “à esquerda” não pode ridicularizar o seu discurso, menosprezando-o como racista, preconceituoso e odioso. Não se pode: sempre soubemos que essas armas são para ser usadas exclusivamente por uma direita (essa sim) radical. Quando alguém de esquerda desce a esse nível só para se fazer entender, isso já é um comportamento herético. Valha-me Deus.
Parece-me nítido que está já em marcha um plano para normalizar o mandato de Trump, diminuindo assim o impacto mediático que a sua resistência pudesse eventualmente obter, bem como para preparar terreno paras as eleições europeias. Esta nova vaga de ódio pelas políticas de esquerda, desprezando-as como vazias de conteúdo, periclitantemente erguidas nos seus outrora estandartes ideológicos, e cegas, surdas e mudas face às situações dramáticas dos comuns mortais, é muito útil para conduzir a opinião pública a um “protesto” semelhante ao que os americanos levaram a cabo. É impossível negar: dava um jeitaço do caraças à Le Pen que muitos franceses também votassem nela como forma de se insurgir contra um organização democrática doente. Num mundo em que a política não é feita a pensar na polis, é tão fácil enganar as pessoas para pensar que aquele que diz as maiores barbaridades com suficiente convicção (e que por isso não se insere no sistema) é também o grande salvador das nações, que mete dó. Este discurso está, a meu ver, a levar a cabo uma manobra bem mais perigosa que a eleição do Trump: está a lavrar os campos para daqui a uns meses semear mais Trump’s aqui na Europa. A parte mais hilariante: mas por acaso é a esquerda que está ao leme deste navio desgovernado chamado União Europeia?! Onde?! Anda tudo tão cego pelo mais primário ódio que até o óbvio fica pelo caminho: achar que vivemos numa Europa que pensa a política como uma resposta social e comunitária, que impulsiona economias e que protege os mais fracos, é viver um pouco alheado da realidade, meus senhores.
Lamento, mas isto são tretas, não tem outro nome. Os maiores responsáveis pela eleição deste anormal são os americanos que, como ele, ainda carregam consigo profundamente inculcado um racismo e um desejo de supremacia mundial, um preconceito e um sexismo teimosamente entranhados e uma ignorância e inconsciência que dão vómitos a qualquer um. Não me venham encher a cabeça com a retórica dos votos de protesto, exigindo a mudança de paradigma na política: há maneira bem melhores e menos perigosas de o conseguir. Para usar uma analogia útil, é como dizer-se que eu para conseguir subsistir neste mundo corporativista e capitalista, tenho que me deixar enrabar pelos grandes patrões, para deixar de ser enrabada pelos chefes de gabinete. É novamente, limpar o chão com bosta. Só alguém com muito pouca capacidade intelectual consegue acreditar que isto é um argumento válido! Que me digam que o voto de protesto é o voto em branco, consigo aceitar, embora o resultado fosse o mesmo. Agora dizer que detestam Trump mas que era necessário votar nele, pois foi o único que ofereceu uma alternativa real e concreta, é simplesmente estúpido. Quanto a todos os outros, o argumento é bem menos chocante, mas muito mais repulsivo: acredito que larga maioria dos votantes são pessoas iguaizinhas a Trump na sua génese, mas bem mais desesperadas, miseráveis e ignorantes. Ele, como bom enterpreneur que é, usou tudo isto a seu favor (e todos os que tão bem montaram esta estratégia).
Que atirem outra grande parte da culpa para o Partido Democrata, não me incomoda realmente nada: é verdade. Mais uma vez aqui se prova a estupidez americana: tinham o candidato perfeito, apoiado pelas massas com um carinho e uma esperança que há muito já não se via e o que fazem? Chutam para canto, que é comuna. Bernie Sanders era O presidente que este mundo precisava, mas para os grandes interesses corporativistas profundamente enraizados representava um perigo. E o partido não lhe concedeu assim a sua nomeação. Só isto já prova duas coisas: a primeira é que o sistema democrático americano falha em representar o povo, delegando a sua suprema responsabilidade para outros, permeáveis a outras motivações que não a de tornar o Mundo um pouco melhor, e que não parecem interessados em escutá-lo. A segunda é que os Democratas, mesmo perante a vertigem do abismo, ainda assim se recusam a aceitar os verdadeiros perigos e preferem continuar a viver no seu mundinho encantado: vamos lá nomear uma candidata de quem as pessoas não gostam, em quem não confiam; massacramos a oposição recorrendo à mais simplista chalaça e está no papo. Correu mal, meus senhores, muito mal, e honestamente eu não aprecio que andem a brincar à roleta russa com a minha vida. E o que podemos nós fazer agora? Para começar, podemos questionar de forma feroz tudo o que nos vem parar às mãos acerca deste assunto; podemos não ceder a lugares-comuns e a respostas baratas; podemos não ceder a chantagens. Não deixem que este spin tão ricamente ornamentado se instale e se entranhe: discutam com os vossos vizinhos, com o velhote do café que diz que “os políticos são todos iguais”, com aquele tio pseudo-facho que todos temos dentro do armário mas que por estes dias anda aceso como uma árvore de Natal. Não desistam de tentar convencer os que vos rodeiam da teia de mentiras que está a ser tecida e principalmente, escolham com cuidado redobrado em quem querem acreditar. É isso ou ser enrabados, all over again.
15-11-16
O amanhã virá melhor!
Convenhamos que não fica nada bem a uma moça nova e bem-apresentada ser tão pessimista como eu sou. Não sei se foi da semana solarenga e de altas temperaturas, mas o que é facto é que arranco esta semana num humor bem mais aprazível. Talvez a mudança climatérica tão súbita não tenha produzido estes laivos de optimismo só a mim, mas também à nossa mui nobre nação. Esta semana fiquei a saber, através do Ministro do Trabalho, Vieira da Silva, que um dos objectivos deste governo é chegar a um salário mínimo nacional de 600€ até ao final do mandato. Bem sei que logo chegaram os arautos do infortúnio, sustentando com firmeza a tese de que um país como Portugal não consegue alicerçar economicamente um salário mínimo de mais de 500€. E eles que tem de haver contrapartidas que actuem como incentivos às empresas, eles que tem de existir cedências de parte a parte. Perdoem-me a impulsividade própria da juventude, mas na minha gulosa inconsciência eu acho o demarcar desta posição é uma coisa maravilhosa. Encanta-me perceber que quem nos governa já começou a entender que não há maior força motriz por detrás da economia que as pessoas. Será porventura simplista, mas ainda assim animador: uma sociedade em que as pessoas têm mais poder de compra, tem mais potencial para crescer. E não é que é bom gastar dinheiro?! Já sei que para se dar com uma mão, é preciso tirar com a outra. Ainda assim, confesso que tenho preferido ser assaltada por esta mão, que lhe tem associada uma outra mão tão benevolente (e lúcida, já agora).
Outro motivo para sorrir foi a resposta muito sui generis do nosso Primeiro Ministro às provocações pueris do Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schauble. Então não é que o desgraçado veio cometer a “inaceitável intromissão” (como diz Jerónimo de Sousa) e ignóbil desfaçatez (digo eu) de vir comentar o rumo político-económico que leva Portugal?! Eu percebo: também costumo perder algum tempo a teorizar sobre os males de se nascer alemão, nas minhas horas livres. A diferença é que não represento o meu país dentro de uma suposta União (que de unida já tem muito pouco), e não incorro por isso no perigo de instalar um conflito diplomático desnecessário. Enquanto algumas vozes mais puritanas o criticavam por isso, lembrando que há meios oficiais e (também eles) diplomáticos para responder a tais insinuações, António Costa disse não dar grande valor a alemães que não conhecem a realidade do país, preferindo os que nele investem (como a Bosch, por exemplo). “O preconceito é muito pouco inspirador para se falar com tino”, disse ele! Juro que mandei um par de gargalhadas de contentamento! Haverá lá coisa mais optimista que perceber que aquela subserviência insidiosa a uma Alemanha imperialista, preconceituosa e profundamente racista (revelando toda a desumanidade que tem povoado esta linda União) se começa finalmente a esbater?! Chamem-me provinciana e tacanha se quiserem, mas eu apreciei verdadeiramente ver o meu Primeiro a tratar Schauble como a criança mal-educada (e mal-parida, já agora), arrogante e lamentavelmente irritante que é. “Vai mas é para o fundo da sala, meu menino, e vê se aprendes a estar calado, que não estou para te aturar.” Lindo.
Para terminar esta semana tão sorridente, ainda recebi mais outra doçura antecipada do importado Halloween: e não é que um padre resolveu escrever um livro onde expõe a hipocrisia da Igreja face à homossexualidade?! Krzysztof Charamsa (que ainda se sente padre, apesar de ter sido expulso da Igreja Católica em 2015 por ter assumido a sua homossexualidade), afirma, entre uma miríade de outras coisas deliciosas, que Cristo era feminista! Eu refulgi ao imaginar a quantidade de rabos bolorentos que se devem ter remexido desconfortavelmente nas poltronas aquando da notícia desta publicação, confesso sem pudores. Imaginem lá que este santo homem, que também denuncia a postura profundamente machista da Igreja, ao endeusar a Mulher, resolveu dizer que uma grande, grande parte da Igreja é gay! Desculpem-me, mas para mim há poucas coisas tão optimistas como ver as máscaras opressivas que sustentam grande parte da sociedade moderna, a cair. Não que eu tenha alguma coisa contra padres gay, atente-se; digamos que até considero ponto a favor, para ser franca. Mas esta hipocrisia de doutrinar o comportamento dos restantes enquanto se professa uma coisa e se pratica outra, incomoda-me visceralmente. Perdoem-me, que sou daquelas tolas inconscientes que acredita que com a liberdade de cada um poder ser verdadeiro consigo próprio, consegue de forma mais eloquente transmitir a Verdade (ou lá como se diz). Confesso então que acabei a semana (e entro já nesta próxima) bastante optimista: o mundo parece-me menos mau um bocadinho. É gratificante perceber que dentro das grandes improbabilidades, volta e meia acontece lá qualquer coisa e a sociedade moderna dá um saltinho para diante. Há portanto como não acreditar que o amanhã virá melhor?! Esta semana parece-me que não. Se a isto acrescentarmos uma meteorologia que se mantenha favorável, diria até que talvez consiga manter este meu bom-humor até ao final da próxima semana. Isto é: se entretanto não continuarem a exigir a demissão do Ministro da Educação, ou a dissolução da Caixa Geral de Depósitos, ou a empatar o Orçamento de Estado para 2017. Aí, já não prometo nada.
31-10-16
Espelho meu, espelho meu, há alguém melhor do que eu?
Eu sofro de um mal incontrolável, que causa graves danos à minha sanidade mental. Trata-se duma opressiva dificuldade em reconhecer a autoridade. Outros por aí poderão eventualmente sofrer do mesmo mal: a vocês, tal como a mim, não conseguiram implantar com eficácia aquela obediência cega às hierarquias, ou aquela subserviência tão tipicamente portuguesa. Creio que talvez haja um bug qualquer de programação que faça que de quantos em quantos cidadãos, apareçam uns a quem por lapso lhes instalaram um espírito contestatário ou mesmo bélico, se preferirem. Aliado a uma capacidade de raciocínio e de argumentação minimamente funcionais, este defeito de fabrico pode-se revelar nocivo para a convivência salutar em sociedade. É o que a mim me acontece de cada vez que termina o fim-de-semana.
A vida desde cedo nos prepara para lidar com figuras de autoridade que despertam repúdio em vez de respeito. Quantos de nós têm histórias de infância e adolescência em que num trabalho de grupo alguém assume o crédito por ter sido o líder, a força que o impulsionou, e bem vistas as coisas, foi tudo menos isso? Somos desde pequenos treinados para dar mais valor ao que se diz, por oposição ao que se faz. Se recuarmos até esses anos, facilmente nos daremos conta de um leitmotiv comum: sempre que se forma uma equipa de trabalho, nessa equipa há recorrentemente a figura de quem tudo faz para concretizar os objectivos propostos e a figura de quem pouco fazendo (até muitas vezes, sejamos francos, estorvando), acaba por reclamar para si os créditos.
Este comportamento acaba por ser uma constante ao longo de toda a vida académica, embora por vezes sujeito a pequenas alterações de casting: quem foi outrora o oprimido, facilmente se consegue tornar o opressor. Onde o conseguimos observar com mais clareza é na entrada na vida universitária: aqui, todos os iniciantes são doutrinados para a subserviência através de um mecanismo de integração fabuloso a que vulgarmente se chama praxe. E é através da praxe que conseguimos observar de que forma este reformular de condições sociais pode facilmente atingir cada um: enquanto veste umas orelhas de burro e se rebola na lama, um caloiro aguenta estoicamente o “sacrifício”, reafirmando a certeza de que um dia poderá almejar a uma posição no ranking que lhe permita ser ele a ditar as regras. Ou num sentido mais lato, o oprimido aguenta a opressão agarrando-se à vontade de um dia se tornar o opressor.
Quando finalmente chegamos à idade adulta sem “porquês” e entramos no mercado de trabalho, todos estes comportamentos adquiridos se revestem duma suprema utilidade: quem é o grande empresário que rejeita mão-de-obra barata, desesperada para ter uma oportunidade de mostrar o seu valor, que não se queixa perante nada que lhe seja infligido e ainda se mostra cegamente obediente, mesmo que as ordens sejam para prejudicar deliberadamente alguém? Infelizmente, conheço poucos. E é precisamente esta a pergunta que hoje tanto me incomoda: porque nos continuamos a subjugar a um poder(zinho) que por norma não nos merece respeito? Continuamos, dia após dia, a deixar que pessoas com menos competência nos comandem as acções, enquanto lhes legitimamos todas as atitudes por (nos) serem superiores. Quantos de nós têm líderes de equipa, patrões no fundo, que nem sequer conhecem o seu próprio negócio? Que se apoiam no trabalho árduo e abnegado de “colaboradores” a quem tratam com desprezo, mas sem os quais não capazes de o orientar? Quantos de nós temos de lidar diariamente com pessoas visivelmente menos capazes e menos dotadas, mas que se pensam meritórias de um tratamento especial por todos os demais?
Assim, irrita-me visceralmente que não haja mais pessoas com defeito de fabrico, capazes de inquirir e confrontar estes seres (tão) superiores, quando visivelmente estes não sabem a quantas andam e prejudicam assim as organizações que possuem/dirigem. Atenção, não convém criar ilusões: o cenário em que nos levantamos numa reunião denunciando o esquema por detrás das palavras bonitas que acabam de ser ditas, só acaba bem em Hollywood, e mesmo assim, só no final dos filmes. Na vida real, quem o faz está genuinamente a entregar o corpo às balas, sacrificando a sua própria reputação (e muitas vezes, a posição que ocupa na organização), em prol do bem comum, numas vezes, ou tentando travar e reverter a extinção dos valores que nos fazem humanos, noutras. Porque havia alguém de o fazer então, o que é que se lucra com isso? Creio ser esta a pergunta essencial, a que trava pessoas tão capazes e inteligentes. A resposta, embora provavelmente não seja satisfatória e até seja simplista, não deixa de ser evidente: porque se ninguém o fizer, continuaremos a perpetuar o ciclo da injustiça, do medo e da opressão.
O que têm em comum a polémica dos Táxi vs. Uber e as eleições presidenciais dos EUA? Eu digo-vos: chama-se manipulação de massas. Com objectivos muito distintos, é claro: onde uma pretende promover um ódio de classes, servindo os interesses de um capitalismo radical neo-liberalizado, a outra já pretende dar continuidade a essa mesma ideologia política/económica.
Por cá no burgo, esta semana a comunicação social dedicou-se a crucificar toda uma classe de trabalhadores, em prol duma alternativa mais aprazível, dizem. Duma assentada, o português comum vê em si instalada a ideia de que os taxistas são todos os broncos, brutos, mal-educados e ainda por cima, machistas. Tudo porque se têm indignado, e bem, contra o facto da Uber operar com regulamentações diferentes, fornecendo os mesmos serviços. O que nos vendem então? De que esta classe se indigna revoltada, recorrendo à violência mais ignóbil, porque quer o monopólio deste sector de actividade. A cobertura dada à manifestação que ocorreu por estes dias em Lisboa, deu destaque apenas a este tipo de comportamentos, ao apresentar maioritariamente exemplos de pessoas que dificilmente se podem considerar representativas de toda a classe, não exibindo assim a isenção necessária do jornalismo. (Houve inclusive uma peça de noticiário da SIC terminou dizendo que foi recolher dados às redes sociais e não encontrou publicações em defesa dos taxistas. Se isto não é direcionar a opinião pública, então eu vou ali e já venho.) Para começar, estamos a falar de duas grandes cidades em Portugal, Porto e Lisboa, e não da totalidade; nesse sentido, é duma profunda injustiça categorizarem-se todos os taxistas como profissionais idênticos aos que vimos retratados na comunicação social toda a semana. Depois, importa perceber por que raio interessa a essa mesma comunicação social promover um tão veemente ódio de classes.
A nível internacional, temos a decorrer neste momento a maior farsa do sistema político dos EUA: as eleições presidenciais. Encontra-se resumida a Clinton ou Trump, e é neste ponto que se torna possível comprovar a tal manipulação de massas de que vos falo. Trump representa a caricatura do americano comum: é ignorante, preconceituoso, profundamente sexista, agressivo e totalmente desprovido de um sentido de responsabilidade social e comunitária. É, em suma, uma pessoa execrável. Do outro lado, temos Clinton: mulher, profundamente entrosada no sistema político americano, bem preparada. E no entanto, tão ou mais perigosa. Alguém acredita que as elites americanas que comandam realmente não só o país, mas também o mundo, iriam deixar um fulano como o Trump representá-los? É que eu não; basta pensar um pouco sobre as propostas da Clinton para perceber que ela serve muito melhor os seus interesses. E se todo este circo mediático montado à volta de Trump, não fosse mais do que uma jogada para garantir a eleição de Clinton? É que perante uma alternativa tão abjecta, os americanos vêem-se reduzidos a ter de optar entre o mal menor, e esse é certamente Clinton. Analisemos o comportamento de Trump depois da nomeação republicana: na melhor das hipóteses, será considerado suicida do ponto de vista político. É seguro dizer-se que este homem não quer ser eleito. E se fosse propositado? E se ele estiver a assegurar-se de que os republicanos retiram o seu apoio no final da corrida presidencial, garantindo assim a eleição de Clinton? Posto assim, parece muito simples, muito óbvio. Talvez porque o seja, de facto.
Mas ia eu dizendo que estes dois acontecimentos têm em comum o facto de ilustrarem de que forma somos permanentemente manipulados pelos media. Ora vejamos: em ambos assistimos a um circo mediático, um frenesim de curta ou longa duração, respectivamente, que visa ter a maioria da população orientada numa direção muito demarcada. Utilizando muitas vezes uma forma de comunicação totalmente infantilizada, como já Chomsky o avisara, usando clickbaits evidentes, citando e omitindo contextos, apresentando como factos coisas que são na verdade interpretações. Se quiserem reparar, somos diariamente bombardeados com peças jornalísticas em que se apresentam factos que não correspondem à verdade, ou então preenchidos de subentendidos e já pré-interpretados. E curiosamente, todos se direcionam de forma muito semelhante. Já outros bem mais reputados que eu o disseram: orientando a opinião das massas, consegue-se manipular e subjugar um país sem recurso à força. E nós, voluntariamente alheios a tudo isto, continuamos o nosso trajecto traçado por outrem: louvamos a Uber, que os motoristas são muito mais educados e põem a música que queremos, louvamos esta economia de mercado que enaltece a concorrência livre, louvamos Clinton, tão melhor formada e preparada para ser Presidente dos EUA do que Trump. Se quiséssemos esmiuçar este assunto até ao tutano, veríamos que somos manipulados em quase tudo: são os anúncios do creme anti-rugas que não são mais que banha de baleia, a alternativa vegetariana baseada em plantações desmesuradas de soja transgénica, as roupas de marca manufacturadas por crianças em países dum qualquer outro mundo, telemóveis de última geração recheados de app’s que enriqueceram sem que se saiba como uma panóplia de “pequenos empreendedores”, mas que armazenam toda a nossa existência para comercializar esses dados sabe-se lá porquê ou a quem, enquanto nos inundam de ondas electromagnéticas que daqui a 30/40 anos vão desencadear um cancro qualquer. É omnipresente, inescapável e permanente. E podemos fazer tão pouco contra isso que importa, por isso mesmo, fazê-lo. Sejam resistentes até ao tutano, pelo menos naquilo que ainda podem. Não se deixem manipular: de cada vez que uma notícia vos suscitar dúvidas, procurem encontrar respostas; não aceitem as opiniões deste ou daquele como dogmas e procurem contra-argumentos; não acreditem em tudo o que vos dizem. Não papem grupos.
16-10-16
Querido, mudei de vida!
É oficial: deixei-me afectar por o que cuidei ser bloqueio, apenas para descobrir que não o era. É demasiado fácil cair nas teias duma rotina em que o nosso eu se vai lentamente anulando, de modo a nos fundirmos mais eficazmente na horda disforme dos trabalhadores afoitos e diligentes. Ai de quem ouse ter uma vida, de facto, daquelas reais que se vivem em conversas cara-à-cara com pessoas de carne e osso, em esplanadas, cafés, pastelarias, restaurantes, soirées animadas em casa! Trabalhamos para ganhar a vida, perdendo-a nas entrelinhas sem que o mundo pare de girar. Isto tudo para dizer (sem querer maçar ninguém neste meu retorno redentor) que as palavras se me tolheram na garganta nos últimos tempos, enquanto me rendia à espera da viragem das marés.
É precisamente sobre isso que gostava de me debruçar: mudanças. Virares de página, aventuras e desventuras, lançar mãos à obra, partidas, chamem-lhe pois o que quiserem. Quer-me parecer que o português tem em si profundamente enraizado o triste hábito de estar sentadinho à espera que chova. Somos pródigos em queixas recorrentes sobre as mesmas coisas, sempre pequenas e quase mesquinhas, mas que se acumulam umas em cima das outras e imprimem assim um peso desnecessário na nossa existência. Habituamo-nos, vamos aguentando a vida com um estoicismo nada satisfeito, como se aguenta uma tempestade, tentando acompanhar e navegar as marés. E se não fosse assim? E se por um momento, doce e inconsciente, pudéssemos ambicionar tomar nas mãos o próprio curso da nossa vida? Será que o mundo aí parava de girar, saía dos seus carris perfeitamente oleados e descompassava uma batida? Talvez, ou talvez fizéssemos apenas pequenas loucuras que nos aproximam da felicidade. Acompanhem-me por breves momentos numa visita guiada por um mundo imaginário, ficcionado a partir de experiências reais.
Imaginem um mundo em que quando não se está bem num emprego, com a alegria inconsciente de quem não tem medo de ficar sem trabalho, simplesmente nos aventuramos a fazer outras coisas, noutros sítios. Conseguem visualizar o que seria? Um mundo em que não teríamos de nos sujeitar a fazer coisas que nos diminuem como ser humano, ou que vão contra aquilo em que acreditamos; um mundo em que se o nosso trabalho não for valorizado ou sequer reconhecido, facilmente arrumamos a trouxa para procurar um outro onde o saibam fazer. Neste mundo imaginário todas estas coisas seriam a regra: ninguém seria obrigado a levar a vida permanentemente insatisfeito e acomodado a um quotidiano agressor. Não seria um alívio conseguir dizer não quando a consciência assim nos dita, sem receio de represálias de qualquer natureza mais ou menos obscura?
Imaginem também um mundo em que ninguém nos vendeu a ideia de que o normal é encontrar um parceiro para a vida inteira (e se possível, à primeira!), e que por isso, quando estamos numa relação que visivelmente não funciona, a terminamos com maturidade e bom-senso e vai cada um à sua vida. Não seria fantástico deixar de engolir sapos para evitar discussões, de chorar às escondidas (que deus me livre das crianças darem por ela!), de nos acomodarmos a um amor que nos obriga a anular para poder “encaixar”? Sei que certamente será alucinação minha, mas e se as relações fossem menos parecidas com contratos de fidelização ad eternum, e mais com contratos renováveis ano a ano? (Sei que desagradará a muitos usar a analogia com o contrato, mas um casamento não representa isso mesmo, lá no fundo? Se assinam papéis perante alguém certificado e testemunhas... eu diria que não é lá muito diferente.) Talvez nesta utopia as pessoas se envolvessem num relacionamento amoroso mesmo com vontade de o nutrir e estimar dia após dia, pois sem garantia nenhuma da sua perenidade só assim podiam conseguir almejar a segurança das certezas. E caso não corresse bem (e porque muitas vezes não corre, principalmente num país misógino e sexista como o nosso), não seria libertador poder cortar amarras sem vergonhas, encarando os erros como aprendizagem, e procurar a felicidade noutras paragens?
Imaginem por fim que gostam mesmo muito duma coisa, que para efeitos ilustrativos será dançar. Adoram, nunca tiveram coragem de experimentar, vão ficando cada vez mais inibidos com o passar dos anos e quando tal, já nem se lembram que um dia o almejaram. Não é encantador imaginar um mundo onde as pessoas não crescem só até aos 25, mas antes continuam a crescer pela vida fora e a aprender com isso? Acompanhem-me enquanto imagino um mundo em que as pessoas não se acomodam ao quanto já conhecem de si próprias, e continuam (seja lá qual for a idade que tenham) a procurar dia após dia novos interesses, novos amigos, novos hobbies, novos projectos, novas aventuras no fundo. Se pensarmos nisto a fundo, não seríamos assim pessoas mais felizes? A resposta é: sim, seríamos todos bem mais felizes. Só que dá um trabalho monumental, exige uns tomates de aço, e a maior parte de nós não está para isso. Apesar de não parecer, passar a vida lamuriando-nos enquanto a navegamos é muito menos trabalhoso do que ser o capitão do navio. Isso exige pulso, pêlo na venta, jogo de cintura também; exige capacidade para dizer não nas horas certas, para ir atrás daquilo que queremos e fazer em vez de mandar fazer, para pensar em novas respostas às mesmas perguntas. Exige coragem para não ir na cantiga da inércia e mudar tantas vezes quantas forem necessárias. Mudar de ares, mudar de caras, mudar de vida até. Aprender a transformar, reinventar, ou reinterpretar as mesmas horas de todos os dias. E digam-me, conhecem alguém que esteja para se dar a esse trabalho? Asseguro, não há muitas pessoas rijas a esse ponto; mas existem. E são pessoas mais felizes.
08-10-16
O Saque que aí vem (ou como endrominar carneirinhos)
Sei que já vou tarde, e que no final desta semana já nada resta senão cinzas daquele voraz incêndio que se propagou por tudo o que era comunicação social no nosso país. Refiro-me, para quem andou mais distraído, à polémica do “imposto Mortágua”, da “sovietização do país”, do “ataque à classe média portuguesa”. Ou, para leitores mais esclarecidos, tão somente a polémica do imposto sobre os bens patrimoniais de luxo, representada na apresentação duma proposta para uma taxa adicional a estes bens. Confesso que fiquei muito surpreendida ao longo dos 10 dias (ou nem tanto?) em que se propalou esta polémica tão incendiária. Então não é que eu afinal sou mais rica e vivo melhor do que julgava?! Com o salário mensal de um professor licenciado em início de carreira, facilmente atinjo os valores médios do vencimento mensal em Portugal (segundo as declarações de IRS de 2013, o rendimento médio do trabalho desse ano foi de 1.093€ por mês, o que perfaz o total de 13.116€ ao fim de um ano), logo creio que me insiro naquilo que vulgarmente se apelida de “classe média”. Com partidos como o PSD e CDS, (finalmente aproximados em torno duma causa comum, perdoem-me que tenho um coração mole), valentemente auxiliados por uma horda de comentadores políticos a proclamar revoltados que taxar quem tem bens patrimoniais no valor de acima de 500.000€, é o mesmo que castigar e fustigar ainda mais a “classe média portuguesa”, senti-me particularmente estupefacta. Vai-se a ver e este governo anda a perseguir de forma declarada os honestos trabalhadores que labutam incansavelmente todos os dias para conseguir chegar ao fim do mês com as contas todas pagas e comida na mesa!
Só que não. Segundo dados que são públicos, o valor médio dos imóveis em Portugal é de 64.000€: façam lá as contas para ver quantas casas era preciso possuir para chegar a estar sujeito a este novo imposto. Por outro lado, perante a guerrilha montada contra esta proposta, foram divulgados mais números relevantes: é estimado que este novo imposto vá afectar menos de 100.000 pessoas, nada mais nada menos que o correspondente a 1% da população portuguesa. Eu não percebo muito nem de economia nem de matemática, mas creio que se algo afecta apenas 1% duma população de cerca de 10 milhões de pessoas, é difícil argumentar que essa fatia se constitui como a classe média, a mais abrangente e a maioritária da nossa nação. Creio ter dado conta que existe aqui uma qualquer discrepância, pois parece-me que a grande maioria dos portugueses estará certamente longe de ter 500.000€ em bens patrimoniais, da mesma forma que estará longe dos níveis de rendimento anual e de riqueza que lhe estão associados. Segundo um relatório da OCDE de 2015 (!!!) o aumento das desigualdades assume-se como um factor que impede o crescimento a longo prazo e que medidas de redistribuição de riqueza, como esta o é, são parte da solução deste problema. Eu sei, quase me parece produto alienígena, quando fomos diariamente bombardeados com certezas inabaláveis de que esta e outras medidas decorrentes da mesma linha de pensamento iriam atrasar o crescimento económico do nosso país. Mas atenção, que este relatório vai ainda mais longe! Dizem eles que o património é muito mais difícil de repartir, e que por isso a sua concentração acentua as disparidades sociais. Alucinante, não é? E eu que andei aqui uma semana e pouco a pensar que queriam ir directamente ao bolso dos poupadinhos e bem remediados, nós – esse rebanho de trabalhadores afoitos mas baratos -, a classe média! Vai-se a ver e afinal isto deixa os meus bolsos remendados em paz, e vai atrás dos de quem possui tão mais que eu, que até pertence a toda uma outra classe.
Já conseguem entender melhor o meu espanto? Claro que então, há aqui uma pergunta por responder: se assim é, porque andamos nós convencidos de que vinha aí uma saraivada de mais impostos injustos e sempre sobre os mesmos? A resposta é simples, e para mim assume-se como o cerne da questão: porque nos estão constantemente a dizer, gritar, berrar isso aos ouvidos. Ouvimo-lo nos noticiários e no espaço de comentário político que contêm, lemos a mesma coisa em tudo o que são artigos de jornal (pensavam que ia dizer artigos de opinião? Também, mas não só.) e até em tudo o que é rede social. Durante uma semana trememos com a anunciação do regresso do comunismo, com a sovietização do nosso país: não tarda a Mariana Mortágua tomaria pela força o papel de Ministra das Finanças e o Estado apropriar-se-ia das casas que tão arduamente trabalhamos para comprar (mas só ao fim de 60 anos de empréstimo). Então reagimos com fulgor: toca a mandar a Mortágua para o manicómio, toca a exigir a demissão do Costa, toca a deixar que alguém faça um spin tão eficiente deste assunto que nos encaminhe, ovelhinhas bem mandadas, ordeiramente no rebanho.
É triste como algo com uma argumentação tão pobremente fundamentada, imbuída de tanta (mas tanta!) maledicência, conseguiu ainda assim produzir algum efeito na população. A mim deixa-me profundamente desanimada ver que a manipulação das massas é coisa tão presente no nosso quotidiano e que nos revoltamos facilmente com tudo, menos com aquilo que está à frente dos nossos olhos. Felizmente, temos na nossa política uma oposição tão fraca que facilmente se contradiz a si mesma, na pressa em proteger os interesses instalados; felizmente também, temos outras ideologias políticas a tornar-se cada vez mais presentes e com cada vez mais propriedade, a ponto de conseguirem apagar todos estes incêndios. Afinal, apenas se passou sensivelmente uma semana e o que restou? Cinzas ao vento.
02-10-16
Picar o ponto
O Verão já terminou, e foi pródigo em acontecimentos relevantes: os incêndios, os atentados, a recuo do Daesh na Síria, as recentes medidas de combate ao trabalho forçado em Portugal, os Jogos Olímpicos, o Brexit, o congresso republicano dos EUA, a proibição do burkini em França, o sismo de Itália, o muro que querem construir em Calais. Estes e tantos outros seriam temas mais que pertinentes para possibilitar a minha verborreia habitual. Mas talvez pelo carácter indelevelmente motriz do tempo, neste momento há apenas um assunto que parece ocupar o meu pensamento crítico: o regresso ao trabalho.
Aposto que já estávamos todos cheios de saudades de “picar o ponto”! Como qualquer bom CEO saberá, a monitorização do trabalho dos funcionários é uma ferramenta reguladora crucial para assegurar o seu bom desempenho. Se confiássemos apenas no bom-senso de cada um, era ver as empresas a definhar perante um desleixo globalizado no que toca à assiduidade e pontualidade, para não falar do resto: certinho, direitinho. Que ideia é esta de acreditar que as pessoas são dotadas de um espírito de altruísmo e abnegação que lhes permita trabalhar em prol dos objectivos da empresa apenas e só por brio profissional?! É óbvio que a única força motriz por detrás de toda a empresa bem-sucedida, é o medo de represálias. Eu até acredito que durante as férias as pessoas nem sabem muito bem a quantas andam, sem ninguém que lhes diga permanentemente que estão em falta com alguma coisa. Que fazer quando não temos um único email para responder, um único relatório para fazer, um único dossiê para arquivar, uma única reunião para preparar? Um tédio.
No regresso ao trabalho dão-se fenómenos curiosos: se por um lado assistimos frequentemente a um frenesim propalado de boca em boca, normalmente associado a um qualquer prazo de entrega quase no limite, verificamos que findo esse (curto) período de tempo, o trabalho volta a resvalar para o marasmo habitual. Não se compreende: é ver todos os colegas a retomar as funções com um espírito renovado, com promessas de que agora mais frescos e descansados, tudo será melhor, as tarefas a desempenhar serão melhor planificadas e com uma gestão de recursos optimizada, o stress das relações humanas malnutridas será reduzido a mínimos históricos, a comunicação será uma ferramenta aprimorada para construir pontes entre formas de estar e pontos de vista não só diferentes, como por vezes contrastantes. E depois, passados os primeiros 15 dias de trabalho já está tudo na mesma: voltamos a dar conta que o Facebook é a página web mais consultada em horário de expediente, os colegas mais viperinos continuam a dar corda às línguas e granjear duma óptima reputação, os colegas mais estóicos continuam a ser sugados até ao tutano, e o crédito desse trabalho continua a ir para os que, mais espertos, o conseguem reclamar com sucesso na ventilação dos seus egos inchados.
Não tinham já saudades de trabalhar? Como preencher os dias sem aquele protelar de uma lista interminável de tarefas desagradáveis, sem a adrenalina da competitividade do mercado, sem os discursos recheados de frases feitas e intenções mascaradas, sem os telefonemas a desoras, sem as bisbilhotices da vida alheia? Não percebo este desânimo e cansaço extremo que denunciam os jornais: qualquer profissional de sucesso saberá que a norma é anular a sua própria existência em função dos objectivos da empresa que representa; do bem comum, no fundo! É preciso passar 10 horas no escritório? Vamos lá, senão há mais 10 currículos em espera prontos para preencher o nosso lugar. É necessário passar a noite em casa a responder a 128 emails que se acumulam na caixa de correio? Tem de ser, senão o dia seguinte em vez de ter 10 horas, vai passar a ter 12. É preciso ir trabalhar aos fim-de-semana? Claro que sim, para que não sejamos acusados de não “vestir a camisola”. É indispensável aceitar todos os obstáculos que nos colocam como desafios? Ora pois, senão carregaremos o peso de estarmos a ser nós um obstáculo à sobrevivência da empresa.
Afinal, não recebemos todos ao fim do mês? Tudo bem, talvez nem todos tenhamos um contrato sem termo (ou mesmo um contrato, ponto), talvez nem todos consigamos chegar aos 4 dígitos por entre uma avalanche de impostos, cortes de um subsídio aqui e ali, ou uns erros de sistema acolá, talvez nem todos consigamos ir trabalhar de manhã sem entrar num clima de tensão permanente, mas recebemos ou não recebemos? Por acaso saberão, todos vocês que se queixam e denunciam, que se chateiam e que se exaltam, qual é o índice de desemprego em Portugal? Então vamos lá ter calma e refrear o espírito contestatário que vive adormecido no peito de cada um! Isto é o que eu diria, se tentasse encarar este assunto com ligeireza, até para me afigurar uma leitura um pouco mais aprazível para quem (ainda) me lê. Podia fazê-lo, podia até focar-me nas coisas boas da vida e deixar-me de ironias, mas enquanto não começarmos a chamar os bois pelos nomes, o regresso ao trabalho vai continuar a ser, para uma grande fatia da população, um retomar de toda uma rotina recheada de stress e de ansiedade, que pode oscilar entre uma irritabilidade crescente ao acumular de depressões. Por isso, prefiro não me acomodar a uma realidade que agride diariamente milhares de pessoas, e tentar algo diferente: talvez começar por não aceitar a precariedade, a exploração, a falta de respeito, a desonestidade e a coação como sendo a regra. E talvez, ter a coragem de o tentar já a partir de hoje, em vez de estar à espera de ter outro emprego na carteira, só para o caso de podermos ser “dispensados” por isso.
23-09-16
O teu primeiro dia de escola: carta aberta
A esta hora em que te escrevo já deves estar de regresso da escola. Agora já não é “escolinha”, nem “colégio”, é a “escola a sério”. Aquela dos meninos grandes, que sabem ler, escrever e fazer contas. Já te disse dezenas de vezes que tu também até já sabes fazer essas coisas todas, mas não pareces acreditar em mim. Ainda bem, espero que conserves essa inesgotável vontade de aprender ainda durante um bom par de anos. Aposto que comprar aquela carrada enorme de material escolar foi uma aventura! Entrar numa papelaria e ter carta branca para trazer tantas coisas para casa deve ter-te arrancado gritinhos de histeria, ou talvez saltinhos miúdos de entusiasmo. Não vi, mas consigo perfeitamente imaginar o deslumbramento nos teus olhos enquanto desembrulhaste aqueles livros todos a cheirar a novo, os cadernos cheios de páginas vazias que vais rechear de letras e números na tua escrita miudinha, ou enquanto colaste etiquetas com o teu nome perfeitamente desenhado em cada lápis de cor, cada marcador, régua, afia ou tesoura.
Meu amor, espero que não te tenhas sentido assustada quando entraste naquele portão novo, no meio de uma multidão de crianças que (ainda) não conheces. É certo, tinhas o pai e mãe contigo, para te proteger e dar o embalo de que vais sempre necessitar (quero muito acreditar nisto, que vais ser “crescida” e ainda vais continuar a pedir beijinhos e abraços, e se calhar ocasionalmente até colo!). Mas foste tu que ficaste lá sozinha, enfrentando com coragem e bravura todos os obstáculos de um 1º dia numa escola nova. O meu coração fica pequenino e amarrotado de cada vez que me questiono: e se algum colega for mau para ti? E se tiveres vontade de ir à casa-de-banho mas como não sabes ainda bem onde é, não conseguires? E se a comida da cantina não prestar e não conseguires almoçar? E se a professora, ou alguma das auxiliares, te atemorizar de alguma forma, ainda que sem intenção? E se tiveres tanto medo e tantas saudades, que não aguentes?
Estive aqui o dia todo a tentar sossegar este fluxo inclemente de pensamentos. De certeza que não aconteceu nada disto, o teu primeiro dia de escola deve ter sido bem divertido e recheado de novas experiências. Quão bonita e crescida não deves parecer com a tua mochila bem pesada de conhecimento? Que sorte ter rodinhas! E a tua mesa, que tal? Tenho a certeza que já organizaste o teu material todo: lápis, borracha, caneta, afia, tesoura, tudo dentro duma lata colorida, os lápis de cor e os marcadores ainda dentro das caixas escondidos numa prateleira junto com os outros materiais para os trabalhos manuais, os livros empilhados a um canto prontinhos a ser desfolhados. E olha, conta-me lá: aquele menino que vai ser teu colega de carteira, é simpático? Ou é tímido como tu, e não conseguiram falar grande coisa? Aposto que gostaste de conhecer a tua nova professora: é certo que uma professora de “meninos crescidos” é bem diferente daquilo a que estavas acostumada, mas conhecer uma pessoa que sabe tantas coisas novas e bonitas deve ter sido inspirador para ti. Tens de estar muito atenta, mesmo quando ela te estiver a explicar coisas que tu até já sabes, como as regras da sala de aula por exemplo: cada um fala só na sua vez, não se interrompe ninguém, tens de permanecer sentada. Se calhar vão parecer-te regras a mais, mas não te preocupes, tenho um segredo para te contar: as regras existem para serem quebradas.
Entretanto deve ter chegado a hora do lanche e do recreio: espero que comas tanto a fruta como as bolachas e olha, se alguma criança te pedir uma, sê simpática e oferece-lhe. É que sabes, há muitos meninos que não têm tanta sorte e às vezes vão sem lanche para a escola. Se por acaso algum quiser ser teu amigo, tenho a certeza que terás sempre um aliado incansável nessas horas do recreio: vai ser ele que te vai guardar a vez no baloiço, que te vai ajudar se tropeçares a correr, que vai seguir mesmo atrás de ti no escorrega. Lembra-te que se precisares de ajuda para seja o que for, há sempre um adulto responsável por perto; é a ele que deves pedir ajuda, não te atemorizes. Aproveita sempre muito bem a hora do recreio, meu amor! Tu ainda és tão pequenina e já esperam tanto de ti! Não te esqueças nunca que o trabalho das crianças é brincar, e ir aprendendo o mundo enquanto brincam. Ir à escola não é um trabalho, é uma aventura diária que vai encher a tua vida de coisas novas para contares à mãe e ao pai. Tenho a certeza que vão querer ouvir de ti todos os jogos que jogaste no recreio, todas histórias tecidas com os teus novos amigos, todos os desafios que vais superar entre páginas escritas, apagadas e reescritas.
Enquanto me perdi nestes pensamentos, já deve ter chegado a hora de regressares a casa. Gostaste da escola nova? Eu sei que é diferente, e como tudo o que é diferente, às vezes pode parecer um pouco assustador. Mas não te preocupes, tu vais conseguir. Tenho a certeza que não vais refrear o teu instinto de questionar, e vais continuar a querer saber cada vez mais coisas. Tenho a certeza que vais acarinhar todas estas pessoas novas que vão preencher a tua vida e acrescentar-lhe algo, e por elas ser acarinhada. Também tenho a certeza que o teu mundo vai continuar a ser imensamente colorido, e que essa forma de o olhar e o pensar não vai ser engolida pelas novas rotinas que vais criar. Ver-te a crescer às vezes pode ser um bocadinho doloroso; sabes, tenho a certeza que deixar-te na escola pela primeira vez provocou um lágrima ou outra no pai e na mãe. Mas também te sei dizer que isso os encheu de orgulho, por te ver tornar a cada dia uma pessoa melhor, mais curiosa, mais doce, mais atenta ao que a rodeia, mais autónoma, mais engraçada, mais feliz. Mais crescida, meu amor.
16-09-16
Caprichos do Dinheiro
Tive há uns anos a oportunidade de assistir a uma reflexão interessante entre várias personalidades no domínio da Música, acerca do provável rumo que leva a nossa Cultura, e numa fase em que todas as escolas do Ensino Artístico Especializado preparam o próximo ano lectivo, essa discussão voltou a afigurar-se-me pertinente. Na Música, é notório o investimento significativo feito ao longo dos últimos 10 anos, sensivelmente, ao nível do Ensino Artístico Especializado. Esse investimento tem colhido resultados de excelência, visto que são muitos os exemplos de jovens portugueses espalhados pelo Mundo a ingressar nas mais prestigiadas escolas europeias, a tocar nas mais conceituadas orquestras, colhendo até vários prémios bastante reputados (tanto a nível nacional, como internacional!). Seria por isso de supor que o Ensino Artístico Especializado fosse bastante valorizado, quer do ponto de vista social, quer do ponto de vista estatal. Não é o que tem vindo a acontecer. Nos últimos anos assistimos a um lento mas tenaz desmantelamento deste ensino, que só os mais distraídos poderiam tomar por inocente. Desde um constante refrear de financiamento (num programa que se quer acessível democraticamente a todas as crianças), total impunidade para renovar as condições laborais dos professores, tornando-as mais precárias (quase a roçar o insultuoso), a uma manifesta negligência para com as estruturas que suportam toda esta rede de ensino (pela desconsideração manifestada pelos prazos apontados), foram anos de um sofrimento atroz para todos os que se incluem nesta realidade, que felizmente foi interrompido este ano lectivo.
Um país desenvolvido é um país que aposta na sua qualificação, na investigação e na sua cultura, e o desenvolvimento só existe quando há investimento. No entanto, esta “cultura” que idolatra o dinheiro como chefe supremo, trata o investimento de uma forma profundamente arbitrária, sem real conhecimento de quais as repercussões desse (des)investimento, o que por sua vez é revelador de uma profunda incompetência. Parece-me notório que o sistema até agora conseguido é de uma profunda perversidade, e que representa nada mais nada menos que uma morte discreta, mas mesmo assim angustiante do nosso ensino vocacional de música. Não é exagero meu, nosso (dos artistas, esses desmiolados!): como se pode ambicionar que TODAS as crianças em idade escolar aprendam um instrumento e em simultâneo reduzir de ano para ano o número de vagas financiadas por escola?! Serei a única a achar isto profundamente incoerente? Cortar de forma incisiva o financiamento certamente seria prejudicial para a boa imagem dos nossos governantes, ao terminar de forma tão deliberada com um ensino que comprovadamente traz grandes benefícios na formação das crianças (mesmo que o ex-Ministro da Educação se tivesse recusado a aceitar tais estudos e investigações, e se tivesse batido para retroceder 50 anos na qualidade do nosso ensino). Assim, é muito mais eficaz atar um nó e pendura-lo aos pescoços destes artistas, e lentamente ir apertando até eles acabarem completamente asfixiados. Não interessa reconhecer o enorme mérito conquistado ao longo dos últimos 20 anos de ensino artístico, pois afinal de contas, Cultura não gera economia, não gera riqueza! Só movimenta toda uma economia, com milhares de postos de trabalho e dezenas de milhar de alunos.
Mais, é incrível como a grande maioria da população desconhece por completo esta situação escandalosa, mesmo podendo ter os seus filhos a estudar numa escola deste género. Desconhecem também como obrigam as escolas honestas a descer a um nível de desonestidade execrável apenas para sobreviver, enquanto outras conseguem contribuir ainda mais para denegrir a imagem dos músicos neste país, ao obrigar os seus professores a, por exemplo, assinar contratos que deviam ser ilegais para poder usar e abusar do dinheiro de todos nós como contribuintes (a ser verdade o que tem sido amplamente denunciado, tenho de o dizer para evitar acusações de calúnia). Na comunidade musical, estas situações são bastante conhecidas, e todos vivemos na sombra da possibilidade de extinção da nossa arte tão amada. Mas no entanto, preenche-nos uma impotência e uma consequente inércia que nos impedem de unir esforços para realmente mudar o estado das coisas. Pergunto a todos os que partilham desta agonia: o que faço com a informação que me deram? Contrariamente ao que somos treinados (ou formatados) para pensar, todos temos um campo de influência mais alargado do que cremos, nas nossas zonas de actuação. Uma vez ultrapassada a barreira que nos impede de confiar uns nos outros, finalmente coesos teríamos a força necessária para, antes de mais como contribuintes, poder reivindicar a justa fatia do Orçamento de Estado que merecemos, para financiar o ensino artístico em Portugal; afinal de contas, juntos já conseguimos que as responsabilidades que lhe estão inerentes voltassem para o Estado, de onde nunca deviam ter saído! Teríamos finalmente poder para realmente ambicionar mudar o rumo das coisas, ao reivindicar um igual tratamento perante todos aqueles que procuram fazer o seu trabalho o melhor possível, ou um reconhecimento real do mérito desse mesmo trabalho, em vez do tão comum “virar a cara” e “encolher de ombros”.
Temos um governo sensível a estas matérias, que pelo menos aparenta acreditar que a Música é significativa e importante o bastante para pertencer de forma real e tangível nos currículos escolares. Temos provas mais que suficientes dos benefícios amplamente estudados e dos resultados a que se podem ambicionar. Acredito que seria necessária uma reestruturação profunda, e bem sei que somos uma classe profissional algo reticente face à mudança. Mas e se valesse mesmo a pena? Termino dizendo apenas que chegou a hora. A hora de mudarmos a estratificação do objeto das nossas conversas, que recai vezes demais nas pessoas e nas coisas que fazem. Quando as deixarmos de discutir para em vez disso discutirmos ideias, estaremos no patamar da transformação.
01-07-16
Como lidar com a idiotice alheia: Manual de Sobrevivência
Esta podia ser mais uma crónica de crítica social ou política; podia, mas não era a mesma coisa. É que ao longo destas últimas semanas fui confrontada com tanta estupidez (é que às vezes, basta ligar a televisão!), que seria impossível não abordar o tema. Por isso, aviso já os mais sensíveis para não prosseguirem nestas leituras: não encontrarão mais do que tiradas viperinas e escárnio (mal) contido. Pouca gente sabe, mas a estupidez alheia vai-nos montando cerco até darmos por nós completamente tolhidos e isolados, embalados numa inércia que parece mitigar a raiva surda que ela provoca. Ou então, é só pura e simplesmente fastidiosa, uma chatice. Sejam quais forem as suas consequências, acredito que uma pequena minoria de pessoas neste momento pode eventualmente agradecer algumas dicas na luta diária que representa sobreviver incólume perante a proliferação de gente cada vez mais ridícula, irritante, vazia e em suma, idiota. Como sabem, ainda sou uma jovem, parte integrante do futuro de Portugal, e como consequência da veia empreendedora que pretendem inseminar nos jovens como eu, apresento-vos a minha mais recente ideia: aqui têm, para quaisquer usos que lhe pretendam dar, um Manual de Sobrevivência contra a Idiotice Alheia (lamento, mas pela idiotice própria creio que posso oferecer muito pouco, como será notório).
Regra nº1 - Não procures compreender o idiota. Há pessoas que vivem num mundo diferente do teu, numa qualquer realidade alternativa em que não as afectam as mesmas coisas que a ti. Ou até as há as que conseguem ver no mesmo mundo, um cenário completamente distinto! Um mundo em que dizer o que se pensa é ser desagradável, em que responder com honestidade às perguntas que nos fazem é ser rude, em que as opiniões só são válidas a partir duma certa idade (qual ao certo, ainda não consegui perceber), em que denunciar e não compactuar com injustiças é ser contestatário, e quiçá um mundo em que o mérito daquilo que se faz está na forma como se o apregoa (ou em bom português, como se vende). Não adianta por isso dedicar muito tempo e energia a tentar encontrar justificação para as acções de alguém assim. Tendencialmente, quanto mais idiotas são as pessoas, mais tendem a julgar o outro à sua imagem. Ou seja, estão sempre à espera que os outros tenham o mesmo tipo de atitudes que estes têm com os outros, o que gera mal-entendidos muito sui generis. Um conselho de amiga: não vale a pena. Por muito que tentes ver o seu ponto de vista, por muito que “dês a outra face”, vais ser SEMPRE mal interpretado, porque pessoas assim vão ver em ti espelhada a maldade que carregam consigo. Por outro lado, tão-pouco conseguirão chegar a entender conceitos basilares importantes, como que a liberdade de expressão não lhes permite tentar condicionar o comportamento dos outros, ou como que a ponderação não tem nada que ver com os meios-termos das opiniões que nunca se demarcam num real ponto de vista e sim com a forma como se as fundamenta, ou ainda algo tão simples como que o Mundo gira à volta do Sol, e não delas. Grande parte das vezes, o motivo da sua mais recente idiotice está para lá de qualquer compreensão, e investir nessa empreitada só causa um desgaste inútil.
Regra nº2 - Não tentes ajudar o idiota. Para alguém verdadeiramente generoso e bem-intencionado, percebo como esta regra básica de convivência com idiotas pode ser bastante difícil de seguir. Se quiser ser honesta, esta é aquela regra que infrinjo semanalmente, e ó para mim a dar lições de moral! No entanto, é imperioso que o tentes: por norma, os idiotas tendem a encarar a tua ajuda como uma afronta. Não lhes passa pela cabeça que independentemente do nosso próprio mérito, a humildade de pedir ajuda e de assumir o erro acrescenta valor e conhecimento, fica sempre bem, e que é a marca d’água que distingue ser ou não uma besta. Por isso mesmo, nunca irão encarar a tua ajuda como um acto benevolente de bom companheirismo, proveniente de alguém que também tem a humildade de pedir ajuda, mas sim como um ataque às suas próprias capacidades. Há, claro, outro motivo peculiar: é que por vezes se dá um plot twist curioso e estas pessoas passam a encarar a tua ajuda como dado adquirido, como se lhes fosse devida. Quase como se estivesses eternamente em dívida para com elas (por motivos que só elas saberão), que assim consegues ir saldando. O problema é que quando por qualquer motivo não podes, ou não consegues, ou simplesmente não queres ajudar, terás certamente que lidar com uma resposta nada agradável. Vai por mim: cada um dá aquilo que tem, é um facto, mas gasta o melhor que tens com quem de facto merece.
Regra nº3 - Não confrontes o idiota com a sua própria idiotice. No seguimento da regra anterior, pode ser comprometedor fazer um idiota sentir-se estúpido, algo que pode ir desde o desconfortável até ao desastroso. Para pessoas com um ego tão insuflado, a imagem que têm de si próprias distancia-se em larga escala daquilo que de facto são. Uma vez confrontadas com isso, estas pessoas podem (e na maior parte das vezes, assim é) reagir com agressividade! Sentem-se insultadas e ficam ofendidas, vitimizam-se perante os pares, porque afinal a besta és tu, certamente. Acredito que isto te suceda de forma perfeitamente não-intencional, mas o idiota vai sempre achar que o estás a atacar. Perante uma daquelas tiradas que apetece retribuir com argumentos fundamentados, o silêncio pode ser, por vezes, a opção mais pacífica. Eu sei, é difícil ignorar o que a desinformação, a falta de sentido crítico, a ingratidão, o egocentrismo ou a inveja conseguem produzir numa simples conversa de café. Dá uma daquelas ganas de citar Agostinho da Silva, ou recomendar a leitura de alguns cronistas. Mas sejamos honestos: isso é esfregar sal na ferida, porque provavelmente irão perguntar-te se esses são concorrentes de algum reality show.
Regra nº4 - Não desças ao nível do idiota. Esta é uma regra velhinha, mas que permanece actual. Sei em primeira mão como a vileza, o paternalismo, a condescendência e a transversal baixeza podem accionar o gatilho de pessoas mentalmente sãs. É tentador, concedo, mas esforça-te por não ceder à corrente de impropérios que se ameaça soltar: não te tornes parte do espectáculo que um qualquer estúpido decidiu montar, não desças do teu tacão nem procures ir ao encontro destas pessoas. Como aprendi na minha mais recente série de culto, “a lion doesn’t concern himself with the opinion of sheep”, que é como quem diz, uma opinião tão rasteirinha não pode afectar e enlamear alguém que claramente está noutro patamar intelectual. Sei em primeira mão, por causa deste meu feitio (chamemos-lhe) temperamental, que por muito bem que consigas argumentar em estado de fúria assassina, já ninguém te vai levar a sério. Vão olhar para ti simplesmente como uma pequena panela de pressão e pior, vão aprender que é divertido provocar-te até te ver estourar. Nestes cenários, é sempre eficaz retorquir com uma tirada assertiva sim, fundamentada claro, mas com vocabulário que sabes que tais pessoas nem sequer possuem no seu léxico. Resulta sempre.
Regra nº5 - Sê o melhor que podes ser. É fácil cair no erro de achar que és dono e senhor da razão, quando te dás conta de que estás rodeado de idiotas. Não percas de vista duas coisas: primeiro, que nunca serás só tu no mundo e que ainda há muita gente com quem se consegue ter uma conversa real, mesmo com pontos de vista diferentes do teu. Em segundo lugar, que o facto de estares certo acerca de determinado assunto (e não vais estar sempre certo), não impede que tentes aprender com aqueles que pensam diferente de ti, ou mesmo com aqueles em quem não reconheces qualquer réstia de perspicácia. É fácil montar trincheiras e entrar num clima de hostilidade perante tudo e todos, mas se há regra que tens mesmo de seguir, é esta: não deixes de querer aperfeiçoar-te, de procurar crescer e aprender com todo e qualquer tombo, não tenhas medo de arriscar e de falhar, não tenhas receio da opinião dos outros. Quanto mais te tentarem pisar, recorda: não deixes que te amestrem, não deixes de ser tu. Se pertences ao lote de pessoas que verdadeiramente acrescenta algo a este mundo tantas vezes injusto, não te comportes como os idiotas que rejeitas, encerrando-te em ti mesmo. Entrega-te a quem merece e continua a tentar ser a tua melhor versão, dia após dia. É a suprema “bofetada de luva branca”, garanto.
26-05-16
E aí, galera? Tem golpe na parada!
O circo está montado no Brasil. E não sou só eu que o digo; embora pareça passar despercebido à nossa imprensa, alguns dos jornais mais prestigiados do mundo, como o The New York Times e o The Guardian por exemplo, têm vindo a público denunciar a destituição da Presidente Dilma Rousseff por aquilo que representa: um golpe de estado. Eu digo mais: este golpe representa até onde o poder instalado é capaz de ir para manter os privilégios acumulados ao longo de gerações, representa o ódio e a maldade que estas bestas nutrem por todos os que não da sua casta (e sim, porque em pleno século XXI o mundo ainda se divide por castas!), e representa por último a ignorância e complacência com que parecemos aceitar tudo isto como condição inescapável. Por entre a névoa lançada por toda a classe política conivente, admito que possa não ser muito fácil compreender o logro cometido e a urgência da sua reparação. Por outro lado, o Benfica foi campeão, e percebo que haja coisas mais interessantes em que pensar.
Em primeiro lugar, importa perceber como e porquê foi Dilma afastada da presidência. Perceber como, é simples: à luz da divulgação de escutas entre Dilma e Lula da Silva, no âmbito do caso Lava Jato, a Câmara dos Deputados (parte integrante do Congresso brasileiro) achou por bem ponderar a destituição da Presidente. Formaram uma comissão de inquérito para analisar a dita que, ao ser aprovada, conduziu numa votação pelos deputados para levar o processo de impeachment até ao Senado (outra parte do Congresso brasileiro). Aqui, foi aprovado com uma maioria de 55 senadores contra 22, o que se traduziu no afastamento da Presidente por 180 dias (6 mesinhos, vá). Parece tudo muito sério e bem conduzido, postas assim as coisas. Só que não foi: em primeiro lugar, para haver impeachment, tem de haver crime, que é como quem diz, Dilma tinha de ser constituída arguida em algum processo. A centelha que desencadeou tudo isto nada tem que ver com os motivos formalmente apontados: para todos efeitos (legais, deverá supôr-se?), Dilma foi impugnada por um suposto “crime de responsabilidade”. Eu também não sabia o que era, e fiquei alarmada com tal denominação. Sosseguem, não vale a pena apoquentarmo-nos: parece que afinal este “crime” é uma práctica corrente de manobra fiscal usada por todos os governantes sem quaisquer consequências (sim, em Portugal também). Trocando por miúdos, consiste em, no sentido de cumprir metas orçamentais, “empurrar” para o 2º semestre do ano despesas efectuadas no 1º semestre, por exemplo, isto para explanar a questão de forma muito simplista.
É anedótico, ainda para mais tendo em conta que é de conhecimento público que as motivações foram outras bem diferentes. E quais, então? Simples: Lula da Silva. O ex-presidente esteve implicado no processo respeitante à Operação Lava Jato e tinha o seu telefone sob escuta. Como forma de conseguir imunidade, discutiu a possibilidade de ingressar o governo de Dilma, e a conversa em que falam acerca disso serviu de mote para toda uma direita política brasileira, recalcada, ressabiada e sedenta de poder, ambicionar implicar a Presidente no processo. O ridículo da situação é que Dilma parece ser a única a não estar de facto envolvida na operação: Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, o mesmo que conduziu a votação que denunciou o ódio recalcado destas pessoas para a posteridade, foi entretanto afastado do cargo por estar implicado em VÁRIOS casos de corrupção, entre os quais o Lava Jato. Só na comissão criada para analisar este processo de impeachment, metade (!!!) dos membros estava sob investigação do Supremo Tribunal e na totalidade do Congresso, um terço dos políticos está implicado em processos relacionados com a corrupção. Outro dado curioso: a gravação das escutas telefónicas de Lula da Silva foram divulgadas com o aval do juiz federal responsável pelo processo, Sérgio Moro. Não sei quanto a vocês, mas a mim parece-me intrigante que um juiz federal manifeste uma atitude tão declaradamente tendenciosa, assim como me parece escandaloso ver uma corja corrupta até ao osso de forma tão ostensiva, a acusar a própria Presidente do mesmo. Enfim, aquela história de não atirar pedras quando se tem telhados de vidro, ou como bem disse um grande humorista brasileiro, Gregório Duvivier, é “querer limpar o chão com bosta”.
Uma vez afastada do cargo, a governação do país passa a estar a cargo duma espécie de governo de gestão, chefiada pelo vice-presidente em funções, Michel Temer, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), eterna oposição do PT. E é aqui que o caso ganha contornos verdadeiramente escandalosos. É que ao contrário daquilo que seria eticamente recomendado, este presidente interino (tão impopular que nem sequer consegue reunir 2‰ de intenção de voto) optou por NÃO convocar eleições e empossou um novo governo, de que ele se assume chefe de estado. Só que à data, estava não só implicado no processo Lava Jato, como estava já a ser investigado! No entanto, aquilo que tantos criticaram em Lula da Silva, aplica-se agora não só a ele, como a alguns dos ministros que empossou: têm imunidade e não poderão ser julgados. Parece jogo de criançada não parece, isto de acusar uma pessoa de fazer uma coisa para depois ir fazer a mesma coisa? Uma espécie de “quem diz é quem é”, diria eu. Michel Temer nomeou um governo de 23 homens brancos, sem mulheres e sem negros, num país em que a maioria da população é constituída por mulheres e por negros, algo que não acontecia desde a Ditadura. Destes 23 ministros, 7 deles eram (espero que ainda o sejam) acusados de envolvimento no caso Lava Jato, alguns deles já tinham sido inclusive constituídos arguidos! Destes 23 ministros, são 12 os que em 2014 receberam doações de empresas investigadas pela Operação Lava Jato e que se candidataram a algum cargo político. Sim, porque no Brasil as campanhas são financiadas por entidades privadas que, generosas que são, fazem doações para ver pessoas de bem nos governos. Que é como quem diz, empresas com interesses de milhões investem milhões num político para que depois este, no momento certo, saiba retribuir. Chama-se lobby, e à semelhança dos EUA, no Brasil é legal.
Mas dizia eu, Michel Temer empossou assim um governo que se advinha promissor para o futura da quinta economia mundial: nomeou um pastor da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus), criacionista (ou seja, que rejeita a teoria de Darwin e prefere acreditar que eu hoje estou aqui porque nos primórdios nasci duma costela dum gajo), para ministro da Ciência e Tecnologia (também ele implicado em processos de corrupção); o novo ministro da Justiça chegou a comandar uma política na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo que aumentou em quase 70‰ as mortes por acção policial; o novo ministro da Agricultura é um dos maiores responsáveis pela desflorestação da Amazónia (também ele implicado em processos de corrupção); a Comissão de Direitos Humanos está agora a cargo de um coronel que foi alvo de 29 processos de homicídio! Já é nítido o suficiente? Posso continuar: Michel Temer obliterou o ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, o Ministério das Comunicações e o Ministério da Cultura, na tentativa de não usar ao desbarato dinheiros públicos (quanto a vocês, não sei dizer, mas a mim parece-me outra coisa: um prenúncio de um controlo excessivo e abusivo de determinados sectores da sociedade, próprio dum regime ditatorial, é o que me ocorre de forma mais imediata); já veio a público defender a privatização de vários serviços públicos e a redução de alguns direitos laborais, pois embora seja a quinta potência mundial, o Brasil não está num nível de desenvolvimento económico que permita este tipo de luxos!
Deixei o PORQUÊ para o fim: porquê esta luta para ver Dilma Rousseff pelas costas, porquê esta perseguição a Lula da Silva, se nos últimos 10 anos o Brasil evoluiu imenso em todos os grandes indicadores?! Por maldade. Porque o PT, Partido dos Trabalhadores, afrontou os antigos coronéis de fazenda, porque ousaram enfrentar esta cultura latifundiária instalada há séculos no Brasil, porque a classe alta brasileira ainda não tolera ter os mesmos direitos que pobre de favela, porque a ideia de partilharem algum (pouco) do seu (muito) dinheiro para que todos possam ter uma existência com um mínimo de dignidade cada vez os enoja mais profundamente. O PT foi a real retaliação por séculos de escravidão e exploração, chegando ao poder com uma força absolutamente transformadora. Os donos do dinheiro antigo sabem esperar, mas não conseguem esconder o ódio que carregam consigo. Eu ouvi a gravação do “tchau querida” e vi os vídeos das votações na Câmara dos Deputados; se o fizerem, creio que se tornará óbvio também para vocês onde reside a verdadeira maldade (com deputados a chegar ao cúmulo da filha da putice, ao ameaçar outras deputadas de violação, ou a “dedicar” – sim, as dedicatórias foram uma constante – o seu voto a um dos torturadores de Dilma enquanto presa política), assim como talvez possam passar a ver nitidamente a mentira construída acerca duma suposta salvação do Brasil. O Brasil foi salvo há uma década atrás: agora, está outra vez nas mãos dos seus captores.
19-05-16
O Drama, o Horror: chegou o fim da Mama dos Colégios.
Nas últimas semanas instalou-se um clima de pânico na educação em Portugal; como se já não bastasse ter cometido a ousadia de vir abolir os tão salutares exames de 4º e 6º ano a meio do ano lectivo, instalando o terror nos professores e nas vidas das crianças, este Ministro da Educação, não contente, vem agora destabilizar um pouco mais as rotinas do ensino português. Este novo ministro embarca agora numa declarada guerrilha contra o ensino particular e cooperativo, dizem todas as manchetes da nossa imprensa. Isto porque decidiu redirecionar o investimento público para a escola pública, que ao longo dos últimos anos se viu negligenciada a ponto de ser confrontada com a sua própria extinção. Não será tão óbvio para todos o clima de manipulação da opinião pública e a instrumentalização de professores, alunos e pais, como é para mim. Por isso mesmo, é isso que aqui me proponho a expôr. Ora, vejamos.
Em primeiro lugar, urge clarificar qual é o verdadeiro significado e a real intenção destes tão badalados contratos de associação, celebrados entre o Estado e algumas escolas particulares. Eles surgem precisamente porque cabe ao Estado tutelar e garantir o acesso livre e universal a um ensino obrigatório. Em zonas em que a rede pública não consegue responder a todas as necessidades da comunidade (traduzindo, em sítios em que as escolas públicas disponíveis não conseguem absorver a totalidade das crianças), o Estado comprometeu-se a financiar o seu ensino em escolas particulares, de forma igualmente gratuita para os mesmos, suprindo essa necessidade. Contra isto, há muito pouco a dizer: seria de esperar que precisamente por isso as escolas nessa situação estivessem tuteladas também pelo Estado, no sentido de garantir iguais condições laborais aos docentes e iguais condições de acesso e funcionamento às crianças contempladas, o que de facto não acontece, pois estas escolas têm total autonomia. Mas do ponto de vista ideológico, constitui-se como necessário, pelo menos até a rede pública não conseguir evoluir de modo a dar uma outra solução ao problema, e contra isso, nada.
Por isso mesmo, é preciso perceber que nos últimos anos este conceito foi sistematicamente ABUSADO pelos sucessivos governos, na medida em que passaram a financiar muito mais escolas particulares do que as necessárias, com valores muito mais elevados do que os esperados, com interesses muito mais diferenciados do que os iniciais. Aquilo a que hoje assistimos, como já alguns têm vindo a público dizer, é à atribuição de um financiamento elevadíssimo do Estado a várias entidades particulares, financiamento muitíssimo mais necessário na rede de escolas públicas, que assim se tem visto condenada ao esquecimento e à negligência. É inegável, à luz do que está bem explicitado nestes contratos, que um sem número de colégios não teria que receber qualquer financiamento estatal, uma vez que não cumpre qualquer serviço público, na medida em que retira alunos que seriam eficazmente absorvidos pela rede de escolas públicas da mesma área. É impensável financiar em 80 500€ anuais uma turma num colégio particular, quando numa escola pública a 1km de distância se têm dezenas de professores colocados com horário zero, por falta de alunos. É também importante lembrar que no memorando da Troika, evitar essa duplicação de despesa (usando a expressão que o Ministro usou esta semana quando foi chamado ao Parlamento para prestar esclarecimentos, esse alarve) se assumia já como uma necessidade urgente e uma linha orientadora apontada. Sobra a pergunta: porque não foi então concretizada, em detrimento de outras bem mais nocivas? Eu diria que “quem tem amigos, não morre na cadeia”.
Em segundo lugar, é importante não mascarar nem travestir a questão. Os doutos defensores da liberdade de escolha e da importância do projecto educativo das escolas na hora dessa escolha, do constitucionalismo do acesso democrático à educação, da prioridade e afirmação do papel dos pais nesta questão, apenas para enumerar algumas das críticas mais usadas, estão a enveredar por uma discussão puramente demagógica. Estão, como se diz em bom português, a responder “a alhos com bugalhos”. O que está consagrado na nossa Constituição é um acesso livre e democrático (por isso necessariamente gratuito) à educação; nesse sentido, uma das funções do Estado é criar, tutelar e financiar uma rede pública de ensino que consiga suprir a necessidade a meu ver urgente, de um ensino de qualidade. Se a verba disponível para essa empreitada é escassa, naturalmente se depreende que os recursos disponíveis DEVEM ser orientados nesse sentido, e não continuamente desbaratados segundo os interesses de uns poucos. Se o ensino público for requalificado e melhor tutelado, como tem sido a intenção deste governo, não vejo porque estará o acesso ao mesmo ameaçado. Por outro lado, também não vejo como pode estar ameaçado o direito à liberdade de escolha. Qualquer pai duma criança de 6 anos que queira ter o seu filho num colégio, pode fazê-lo, sabendo que uma fatia do seu orçamento familiar irá obrigatoriamente para isso, ao contrário do que sucederia se preferisse uma escola pública. Se o ensino do 1º ciclo é igualmente obrigatório e se tal situação pode acontecer neste ciclo, alguém que me explique por favor porque é que isto deixa de ser válido a partir do 5º ano.
A única explicação que encontro para isso é todos gostarem duma boa mama, e naturalmente um desmame nunca será muito fácil. Leram bem, e eu passo a explicar: o único problema real que aqui se coloca vem dos donos dos colégios, que de repente se vão ver com menos dinheiro do que o que querem, alguns deles grupos gigantes como o grupo GPS por exemplo, detentores de milhões anuais para dispor a seu bel-prazer, assim como de vários problemas legais por resolver. Se eu estivesse habituada a gastar um milhão de euros e a receber três, também não iria gostar particularmente de saber que iria passar a receber apenas um; e depois como é que mantinha frotas com 80 carros, como se conhecem algumas situações?! É chato, concedo; vamos então tentar instalar o pânico nos pais dos nossos alunos e nas próprias crianças, colocá-los a todos a fazer bonitos cordões humanos e cartazes a dizer que colégio X não é uma escola, é uma família, vamos puxar dos galões e pôr a Igreja a condenar veementemente esta medida na televisão (que só por acaso, são os donos de uma grande parte destas nem 80 escolas, que também só por acaso, absorvem pouco menos de 150 milhões de euros do Orçamento de Estado), vamos prescindir do contraditório em tudo o que são notícias sobre o tema e passar no Telejornal das 8 imagens de crianças a chorar baba e ranho porque lhe foi dito que a escolinha de que gostam tanto vai ter de fechar para o próximo ano. Vamos mentir, omitir, enganar, deturpar, exagerar, empolar, fazer birra.
Não importa esclarecer que a medida está proposta para daqui a 2 anos, quando terminam os contratos de associação já efectuados, e que no próximo ano lectivo só afectará a criação de novas turmas. Não, o tipo é uma besta! Não importa denunciar a precarização atroz do trabalho dos professores de grande parte destas escolas, sujeitos a pressões inqualificáveis e a condições de trabalho até ilegais. Não, esses professores é que são os melhores, porque trabalham como se não houvesse amanhã (e para eles, de facto, pode não haver, se não se mantiverem caladinhos perante situações de clara chantagem ou exploração)! Não parece importar a ninguém expôr a total desconsideração por tudo o que são despachos normativos do Estado, em que a AEEP (entidade que agrega grande parte das escolas do ensino particular, senão a totalidade) decide que afinal as crianças do 6º ano têm na mesma que fazer exames nacionais (medida sobre a qual não encontrei nenhuma notícia. Curioso, não?), mesmo que o governo tenha dito que não, mesmo que isso seja promover a discriminação. Não, esses gajos é que são uns burros que não entendem o valor da competitividade e dos rankings na preparação dos meninos para a vida adulta. Também não parece importante denunciar as condições muitas vezes desumanas em que as crianças nestas escolas “aprendem”, com recurso a coisas como uma sobrecarga lectiva descomunal a disciplinas de exame, com a realização de avaliações regulares de “treino” para exames desde muito cedo, com a alteração de notas para se manter médias e rankings, ou até para se poder convidar alunos a sair da escola (os burros, esses que estragam a posição no ranking, têm lá alguma coisa que andar num colégio privado?! Para esses é que há o público!), só para enumerar algumas. Não, isso são tudo críticas infundadas que nunca ninguém consegue provar! Por estas e por outras, e precisamente por existirem pessoas assim, é que considero tão urgente requalificar o ensino: se fôssemos todos um bocadinho mais inteligentes, talvez estas questões já nem se colocassem! Meus senhores, a verdade é uma e só uma: cada um coloca os filhos na escola que quer. Ao Estado cabe a suprema responsabilidade de criar uma escola em que o ensino seja real, bem orientado, reflectido, responsável, bem ministrado, e em que as condições laborais de quem nele trabalha todos os dias estejam garantidas acima de qualquer margem de lucro. Essa será sempre, uma escola pública. Quem não gostar e preferir que os seus filhos cresçam extenuados mas rodeados das pessoas certas, potenciando toda uma carreira em áreas como as juventudes partidárias (só para ilustrar com um pequeno exemplo), força. Mas paguem vocês.
08-05-16
E se as cidades fossem coisas de se amar?
E se as cidades fossem coisas de se amar? Assim, como se fossem pessoas, possuidoras de um carácter tão sólido e vincado que se assuma capaz de inspirar a paixão de quem nelas vive? Haverá certamente pessoas com um coração mais aberto, mais disponível para amar. Talvez por isso, mais voláteis, se assim lhes quiserem chamar. Mas nessas pessoas, afigura-se possível que se possa inspirar um amor multifacetado, capaz de assumir várias formas e feitios. São essas as pessoas que se conseguem apaixonar por sítios, tanto como por pessoas, e é sobre esse enamoramento que vos quero falar. Tal como as pessoas, há cidades que comunicam connosco de forma muito particular, num discurso encriptado por entre ruelas escondidas, edifícios antigos, comportamentos populares ou até pela forma como nelas se move a luz. É de mim ou há sítios onde a felicidade parece ser meta mais facilmente almejável, quiçá locais onde o pousio seja mais natural a cada um? Se assim é, creio que talvez assim se justifique a minha mais recente paixão. Já há uns meses que ando num flirt declarado com a cidade de Braga. Poderá até dizer-se que me estou lentamente a enamorar dela; se numa primeira instância os ares bracarenses não foram capazes de inspirar em mim pontinha de afecto, ao longo do tempo, Braga tem-se vindo a insinuar de mansinho, assim como quem não quer a coisa, instalando-se em mim como se fosse coisa natural (e a mim que me disseram que costuma acontecer ao contrário!).
Como não amar uma cidade onde se respira história, onde a passagem do tempo parece coisa cristalizada no momento, a cada canto da cidade? Basta descer a rua do Souto e passear pelas ruelas circundantes para encontrar lojas de antiquários, muitos deles com peças que não se acham facilmente em mais lado nenhum. A cada parte se tropeça nas reminiscências do passado romano, tão distante e simultaneamente tão presente, pois em Braga dele se guarda até o chão. A cidade festeja com extravagância o passado (!), num dia em que todos parecem recuar até quando a civilização era algo tangível e não a mera selvajaria actual. Os próprios edifícios que a compõem exibem as fachadas gastas pela erosão do tempo, e as casas parecem pertencer a uma outra época que não esta, feitas de muitas divisões bem pequeninas, mas com tectos altos e com quintais escondidos. Basta aventurarmo-nos por um dos cafés mais emblemáticos da cidade, A Brasileira, para entender o que quero eu dizer quando afirmo que a passagem do tempo é coisa que se respira em Braga. Como poderia algum dia uma saudosista como eu, sempre recordando com nostalgia tudo o que já passou, não se apaixonar por uma cidade onde o tempo parece ser sagrado? Como não me enamorar por um sítio onde o tempo avança e em simultâneo permanece suspenso, presença constante no ar que nos envolve?
É claro que a dimensão do meu flirt não se resume a isto. Tal qual tola apaixonada, gosto particularmente da luz que dança pela cidade fora. Não sei como, porque não percebo muito de urbanismo, mas talvez pela geometria (ou ausência dela) que parece regular o intricado das ruas e ruelas da cidade, sei que a luz em Braga é diferente. Tanto se esconde e passamos esquinas, ruas, quarteirões sem ponta de Sol, como de repente se abre o Jardim de Santa Bárbara diante de nós, iluminado com uma luz que nem sabíamos existir naquele dia. É curioso, mas mesmo em dias cinzentos, Braga parece ter sempre algures um recanto onde o Sol brilha escondido, juro. Se parar bem no centro da Arcada, é delicioso observar o jogo de sombras que podemos ver brincar no topo dos edifícios, em que a luz tanto está ali, como se esconde isolada num terraço que não se vê da rua. É isso, Braga é uma cidade onde a luz não é imponente, como em Lisboa por exemplo: aqui a luz comporta-se como criança atrevida, tanto se mostra, como se esconde matreira, e eu gosto de a perseguir em tardes suavemente prolongadas de Domingo, calcorreando as ruas enquanto observo todas as restantes formigas-obreiras na sua azáfama indiferente.
Estou tão head over heels (à falta de uma descrição lusa igualmente certeira) que gosto até das pessoas. Os bracarenses são gente muito própria, que compõem de forma determinante a idiossincrasia da cidade. Gostam apaixonadamente de futebol, como de resto em todo o Norte que conheço, e em dias de jogo é impossível passar por um café sem ouvir as mais hilariantes caralhadas. Gosto particularmente da maneira como falam, alto e com nítido sotaque, sem papas na língua e claro, com muita pimenta. Têm um discurso tão idiomático que até têm o seu próprio calão! Um foragido incauto, como moi-même, pode ser surpreendido em qualquer cangosta da cidade (que é como quem diz, em qualquer ruela) por alguém mais bagageiro, ou um begueiro e até um terinho, que noutros locais seriam alguém preguiçoso, um otário ou pior, um xoninhas. Se mostrar ser mais desastrado num jantar entre amigos, poderá eventualmente ser acusado de ser “peco das mãos”, e se tendencialmente fugir com o rabo à seringa, por aqui dir-lhe-ão que “tem sempre porcas a capar”. Digo-lhe mais, aqui as crianças pintam desenhos com borronas e brincam às carrachuchas dos pais.
Os bracarenses têm um jeito muito sui generis de estar na vida, em que o pragmatismo é característica central. Os bastantes bracarenses que conheço são gente decidida, assertiva nas suas acções, o tipo de pessoa que age na hora e sem grandes floreados, mas sim de forma taxativa. Mas ao mesmo tempo, gostam de saborear os prazeres que ela tem, particularmente os relacionados com comida e bebida. Sim, e porque as mulheres se conquistam (também) pelo estômago, devo dizer que por aqui se come bem e com prazer, e quem gosta particularmente de doces encontrará aqui uma cidade que sabe satisfazer quaisquer eventuais necessidades. Mas ia eu dizendo, os bracarenses parecem estar habitualmente de bem com a vida, na forma como caminham pela cidade pausadamente, sem correrias ou arrelias. Gosto que gostem de festa, de bulício e de alegria, mesmo quando as agruras da vida facilmente derrubariam qualquer um. Se preciso for, rebenta-se com a cabeça ao Judas e faz-se assim a festa na mesma. São gente que gosta de música, teatro e outras artes que tais, sem a presunção de outras capitais. Aqui tudo parece ser mais óbvio e mais simples: faz-se o que se gosta, e quando não se gosta, muda-se o que se faz.
Não estranhem pois o meu enamoramento, pois há traços de carácter irresistíveis até para o mais empedernido dos corações. Que é o meu caso, atenção. É claro que tudo isto, esta placidez e serenidade de espírito nada típicas nesta que vos escreve, não acontecem por acaso. Isto sou só eu que ando num flirt muito intenso com a cidade de Braga. E o vosso, qual é?
Ensaio sobre a cegueira portuguesa
Vivemos num frenesim constante que nos rouba permanentemente de tempo e energia para verdadeiramente olhar a realidade em que nos movemos. É a única explicação que encontro para me ver rodeada de tanta estupidez. Como é certo e sabido, em períodos de interrupção não-lectiva os professores entram de férias e não fazem mais do que ficar todo o santo dia de papo para o ar (enquanto papam o seu chorudo salário, claro está); por isso esta semana tive muito tempo livre. E foi terrível. É que com tanto tempo livre tornou-se inevitável não reparar em tantas manobras (mais ou menos) organizadas para manipular a opinião pública (foi uma semana particularmente recheada, sejamos justos). Para mal dos meus pecados dei-me conta que o comportamento manipulativo está presente em todas as franjas da sociedade e instalado até nas mais pequenas coisas. Por exemplo, todos nos queixamos da falta de patrulhamento em zonas mais “complicadas”: seja aquelas naturalmente difíceis de si, ou aquelas que ficando mais isoladas durante o período nocturno, representam um perigo acrescido. Mas nem por isso têm lá um Sr. Agente. Esta semana isso foi particularmente polémico por causa da morte (agora dizem que foi acidental, se é que uma rixa de bar violenta ao ponto de atirar com o crânio de alguém para o pavimento, pode eventualmente ser considerada acidental) de um estudante universitário de 20 anos no Porto. Numa zona já por diversas vezes sinalizada como palco de violência, continua a não existir um patrulhamento visível e que demonstre segurança a por quem lá passa. “Mas estes polícias estão naturalmente sobrecarregados de trabalho!”, responderão vocês. Concordo: sobrecarregados de trabalho para privados (com ou sem lucro pessoal, que dessas matérias não possuo dados relevantes), como por exemplo quando ficam um dia inteiro a vigiar enquanto os funcionários de uma empresa privada qualquer ao serviço da autarquia, faz uma intervenção na rede de esgotos; afinal as tampas são de cobre. Não sei se este tipo de trabalho se pode considerar sazonal, mas esta semana por todo o lado que passei vi polícias espalhados por várias tampas, enquanto zelavam pela segurança do cidadão comum. Concordaremos que saber que não há nenhum meliante por esse Portugal fora, capaz de conseguir surripiar uma tampa do esgoto para lhe vender o cobre, nos deixa a todos bastante mais tranquilos. É bonito ver tanta Polícia na rua. Às 8h00 da manhã. No meio do trânsito. Em vez de ser às 02h00 da manhã em zonas isoladas com estabelecimentos nocturnos.
Num plano mais alargado, gosto também de ver a forma como vivemos num clima de censura que ninguém parece reconhecer. No dia em que a justiça angolana decidiu condenar 17 pessoas por se reunirem, acusando-os de quererem derrubar o regime (coisa que a posteriori não me parece de todo descabido) a penas de prisão até 8 anos (variando de pessoa para pessoa), só o Público é que considerou que isto seria digno de ser noticiado no próprio dia. Nenhum dos outros “grandes” jornais partilhou dessa opinião, quiçá por serem em parte propriedade da Isabel dos Santos (filha do Presidente angolano). Afinal por cá já temos a censura a funcionar, e ninguém deu conta. Creio ser do conhecimento geral a expressão get in bed with the devil. Parece-me que continuar a esquartejar as nossas empresas e vender os pedaços a privados, particularmente se os compradores forem recorrentemente os mesmos, é um bocadinho isso. Quase como ser cúmplice numa suposta invasão. Só neste caso ninguém quer vir para cá fazer nada, graças a deus que não nos querem roubar o território! Só nos querem levar a economia e umas poucas de liberdades que fazem desta nação um Estado de Direito. Não será por certo preocupante.
Outra coisa gira que aconteceu decorrente precisamente deste assunto, foi a grande indignação que insuflou os peitos duma parte da população nacional, face à inércia que parece ter invadido Catarina Martins (líder do Bloco de Esquerda), que quando o governo era outro se insurgia face à indiferença com que tratavam o caso. É que esta senhora aqui há uns meses proclamava e vociferava contra a indiferença com que o então governo da coligação CDS/PSD tratava a prisão destes activistas. Agora que o governo é PS e tem o apoio parlamentar do seu partido, esconde-se bem escondidinha que nem um rato na sua toca e não diz absolutamente nada?! Já não vocifera, nem se insurge?! Só trata de formular em conjunto com o PS uma moção para apresentar no Parlamento, de modo a condenar esta posição da justiça angolana. É este o silêncio e a hipocrisia da senhora. Convém também lembrar, embora só se tenham passado uns poucos dias, que essa moção foi chumbada com votos contra do CDS, do PSD e do PCP, e não deixa de ser particularmente irónico que haja deputados destes partidos a partilhar no Twitter uma suposta indignação contra tal injustiça, para no momento a seguir votarem contra a sua condenação pública, como foi por exemplo o caso do deputado do PSD, Duarte Marques.
Há muitos mais exemplos desta natureza. Estamos rodeados de manobras destinadas a orientar a opinião pública, cuja intenção é servir os interesses de quem quer que tenha poder suficiente para puxar os cordelinhos. E presentemente, esse poder parece estar nas mãos de um neo-liberalismo perigoso, uma espécie de capitalismo desenfreado que parece consumir-se a si próprio. Que é como quem diz, lá naquela malta de direita, pronto. O que me revolta as entranhas é perceber o quão susceptíveis somos a essa manipulação, o quanto a nossa educação e a nossa cultura, tão maltratadas ao longo das mais recentes décadas, falharam em conseguir edificar pessoas com bom-senso, inteligência e perspicácia. Ou com competências tão básicas como a de saber ler e interpretar uma notícia. Somos todos cegos, enjaulados nas nossas gaiolas doiradas, enquanto preferimos continuar sem perceber a ponta dum chaveiro acerca do que nos rodeia, porque dá demasiado trabalho. É, dá demasiado trabalho pensar, de facto. “Só há merda à venda neste supermercado? Pronto, então levo 2 quilinhos de merda.” Viva ao capitalismo e ao consequente consumismo desenfreado. Viva à indiferença, viva à ignorância e à dormência de todo o sentido crítico. Viva à censura declarada e à opressão camuflada. Viva à cegueira.
03-04-16
Do ódio e outros demónios
Esta não era a crónica que tinha preparado para esta semana. Este não era o tema que queria abordar. É aliás, um tema de que tenho fugido terminantemente, à semelhança de larga maioria da sociedade, de resto. Porquê? Porque é doloroso ser confrontado com a maldade humana, nas suas diferentes formas. Estou obviamente a falar dos mais recentes atentados (que se dizem) terroristas em Bruxelas, os mais recentes numa linha que parece não ter fim à vista. Mas a maldade de que falo não se denuncia apenas naqueles que decidiram explodir com dezenas de pessoas. A maldade humana assume uma forma muito sui generis na forma como o resto do Mundo reage a estes atentados, o que se diz e o que se mostra, o que se escreve e o que se faz.
Assusta-me a eficácia que se tem conseguido na implementação deste discurso do ódio. Todo o mundo logo se mobiliza para odiar, julgar, batalhar, mas poucos são aqueles que se dispõem a tentar ouvir, ou tentar perceber. E há muito que tentar perceber, garanto. Estas respostas simplórias de que há uma religião que odeia mais que as outras, que incentiva e instiga a violência e a barbárie, e que por conseguinte todos os praticantes dessa mesma religião são uma ameaça declarada, merecendo ser por isso combatida, a mim não me satisfazem. O afunilamento da informação, orientada para um ponto de vista apenas, criando, ou pelo menos colaborando na criação de uma visão deturpada da realidade, a mim afronta-me a inteligência. Há para mim 2 grandes logros criados, manufacturados porque todos aqueles que têm um interesse (naturalmente económico, mas não só) muito forte na perpetuação de conflitos. O primeiro é que os refugiados são uma ameaça. O segundo é que nós queremos combater isto. Vamos por etapas.
O Daesh (sim, porque não são um Estado, não têm nação, não têm nada a não ser uma rede difundida pela mundo) não é uma consequência inevitável do islão. Em grande parte das afrontas que esta religião faz aos católicos fervorosos, o catolicismo não difere muito. A instigação da violência contra os infiéis (basta pensar nas Cruzadas, ou na Inquisição), a misoginia e a opressão da mulher (eles podem-nas obrigar a andar de burka, mas também a religião católica embora goste delas um pouco mais soltas, também coloca a mulher como alguém inferior ao homem, origem de todo o pecado), só para enumerar dois exemplos. O que torna as pessoas más NÃO É a religião que professam, mas sim os seus valores e consequentemente a forma como a interpretam e aplicam. Estes milhares de desgraçados que nos têm “invadido” as fronteiras são refugiados, um estatuto reconhecido universalmente, gente que foge da desolação de guerras que fomos nós que criamos. São muçulmanos e têm costumes diferentes? Sim. Se alguns deles poderão ter visões da sociedade que chegam a assustar? Certamente. Mas se achamos verdadeiramente que os nossos costumes e valores é que estão certos, a forma real e eficaz de os difundir não é ir para lá “estabelecer a democracia”. Chama-se integração, meus senhores. É deixar que uma geração após a outra, uma vez sentindo uma real integração no mundo ocidental (real, não aquela que andamos a deturpar até hoje), possam ir sendo positivamente influenciadas, levando-as a alterar costumes menos dignos. Esta é de resto, evolutivamente falando, a forma como no resto do Mundo se têm afastado prácticas também não muito correctas (a escravidão, o casamento forçado, a ausência de direitos legais para as mulheres, por exemplo).
Não se lhes pode fechar a porta, nem tão pouco criar muros (será que o Muro de Berlim caiu assim há tanto tempo?!), ou muito menos empurrar para campos (a semelhança com os campos de concentração passa assim tão facilmente despercebida?!). São pessoas, exactamente iguais a mim ou a vocês, pessoas completamente desesperadas com as mãos vazias e os filhos (crianças, só crianças) nas costas. Arriscam tudo para cá chegar, fugindo duma completa destruição instilada por nós, ocidentais, e nós viramos-lhes as costas?! E porquê? Porque nos adormecem difundindo o discurso do medo. Por cada 100 refugiados que chegam, não sei quantos são terroristas infiltrados. Mesmo os que não são, vêm para cá propagandear a mensagem e converter os outros (os nossos!) a sê-lo. Porque não está certo oferecer-lhe melhores condições de vida quando nós não temos as que devíamos ter. Será mesmo só a mim que tudo isto parece absurdo? São pessoas, têm o mesmo direito que eu a asilo como refugiados de guerra. Tudo o resto, são tretas.
Mas vamos agora ao segundo ponto, então. São tretas porque é tudo uma grande teia de mentiras, em que a aranha bem no centro, bem gordinha à força de tantas mosquinhas que comeu, são os E.U.A. Sem querer escrutinar teorias que provavelmente menosprezariam como vulgares teorias da conspiração, há factos inegáveis aqui no meio. Como é que os E.U.A. podem ser íntimos parceiros da Arábia Saudita, o país com maior índice de radicalismo religioso, e depois podem invadir outros países, como invadiram o Afeganistão ou o Iraque, para instalar a democracia e combater o terrrismo? Grandes nações não entram em contradições deste tipo; se o fazem, é certamente em consciência e por motivos muito fortes. Razões como os milhões de dólares que ganham com a exploração petrolífera e com a indústria do armamento, por exemplo, para falar apenas dos mais imediatos. É também inegável afirmar que o fanatismo e radicalismo religioso, embora uma constante secular (em todas as religiões, já agora), só desde 2001 é que mostra ser organizado, amplamente difundido, convenientemente armado e globalmente mortífero. Antes não eram mais do que loucos escondidos em pontos distantes pelas montanhas. O que mudou então? De onde é que apareceram os recursos necessários? Espera, 2001 não foi o ano do 11 de Setembro? Não foi a partir daí que esta zona do Mundo passou a ser constantemente invadida pelos E.U.A? Pois.
Lamento, mas basta uma breve e sintética análise à histórias destes países, para perceber que não eram nem retrógrados, nem extremistas, nem porra nenhuma antes de alguém ter conseguido financiar uma mão cheia de grupos radicias a ponto destes conseguirem chegar ao poder. Por isso sim, este massacre de há quase duas décadas, fomos nós que o criamos. Nós, ocidentais, europeus, americanos. Nós, os civilizados, os democráticos. O que é curioso verificar é que a informação que nos chega, apresenta sempre as mesmas incoerências, sempre direccionadas para o mesmo lado. Afinal mataram o Bin Laden, não foi? Ninguém sabe bem como, nem ninguém percebeu porque é que supostamente o mataram se era uma mais-valia tão valiosa para desmontar o terrorismo islâmico, ninguém viu nada, mas dizem que sim, que o mataram. Afinal, todos os noticiários divulgaram as fotos dos homens que orquestraram estes últimos atentados (os de Bruxelas, claro, que o do Iraque é lá na terra deles, já não é bem a mesma coisa), mas ninguém estranha que num aeroporto cheio de centenas de câmaras, as imagens de vigilância nunca pareçam conseguir uma imagem clara e nítida dos culpados. Ninguém sabe bem como estes acontecimentos passam a ser factos reais, verdades absolutas. Só sabemos que estamos a ser bombardeados continuamente com estas “informações”, logo se dizem todos o mesmo é porque deve ser assim. É só a mim que isto parece incrivelmente estúpido? Não me entendam mal: a perda de centenas de vidas, a disseminação do medo no centro de uma Europa já assustada, a brutalidade das feridas que se abrem, são absolutamente terríveis e merecem por isso toda a minha compaixão. Mas eu só gostava de respostas satisfatórias às perguntas que me assaltam, e gostava de ver acções dignas e reais. Não me tentem ludibriar por favor, não desprezem assim o sofrimento de tanta gente. E por favor, não ignorem o sofrimento continuado de milhares de pessoas do outro lado do muro.
30-03-16
Ensinar Música é utopia?
O ensino, enquanto reflexo da sociedade, está em constante mudança, não sendo por isso possível assumir nenhum paradigma de forma dogmática e estacionária no tempo. A visão construtivista que tanto deu que falar surge precisamente como reação a uma exposição prolongada do ensino ao paradigma anterior, principalmente da necessidade de dar respostas mais satisfatórias a alguns problemas que qualquer professor em atividade conhece de perto (mesmo que o anterior governo se tivesse dedicado a crucificar esta visão do ensino). Dewey (1953) dizia que “há mais conversa sobre educação progressista do que propriamente sobre a sua implementação”. Creio que esta citação resume o principal problema do ensino em Portugal, e concretamente do ensino da música. Numa altura em que são dezenas os professores que se formam anualmente neste domínio, o que imediatamente pressupõe uma investigação e uma metodologia muito atuais, acaba por não se perceber uma diferença real e tangível na forma como ensinamos Música às nossas crianças e jovens hoje em relação ao passado.
Creio que o domínio da Música se constitui um campo recheado de potencial para explorar a visão construtivista do ensino e da aprendizagem. Num contexto em que as aulas são individualizadas, torna-se razoavelmente mais fácil para o professor instigar uma aprendizagem muito mais focada nas necessidades e interesses do aluno, nomeadamente no que toca ao processo de orientar este aluno para estabelecer os seus próprios objetivos. A integração de diferentes conhecimentos e comparação com o percurso passado encontra aqui o seu expoente máximo, pois na Música para sentirmos a verdadeira evolução, somos confrontados com estas realidades diariamente. A própria contextualização dos conteúdos com a realidade de cada aluno é também um grande exemplo do quão privilegiados somos: na nossa área é mais que exequível abordar músicas que supram as necessidades dos nossos alunos, necessidades essas que são tanto aquilo que eles gostariam de tocar, como aquilo que consideramos que devem tocar para o seu desenvolvimento. Na Música, como talvez em mais nenhuma área de aprendizagem, este tipo de integração e de equilíbrio não só é possível como é relativamente fácil e simples de conseguir.
Para mim que iniciei a minha atividade docente há pouco tempo, foi-me possível já observar que a realidade atual não se compadece das desculpas vãs que os professores do meu percurso pessoal apresentavam. Atualmente temos toda a informação disponível à distância de um clique, e o mundo avança tão rápido que se torna até difícil acompanhar esse desenvolvimento. Neste sentido, é impensável assumir que os alunos de hoje devem aprender da mesma forma que os alunos de ontem. Se a perspetiva construtivista é reconhecida já há mais de 50 anos, hoje, arrisco-me a dizer mais que nunca, ela constitui uma emergência social. É indispensável uma mudança na representação que temos do ensino e da aprendizagem, na medida em que não mais faz sentido acreditar que os alunos aprendem todos da mesma forma, quando todos os estudos nos demonstram o impacto que tem a grande divergência de contextos sociais que circundam estes alunos. Não faz sentido continuar a insistir numa aprendizagem que se baseia na imitação e na memorização de informação selecionada de acordo com uma experiência tendenciosa de outras gerações educacionais, quando o mundo é hoje tão mais vasto e as necessidades dos alunos completamente distintas das de então.
Neste sentido, o professor atua maioritariamente como facilitador da aprendizagem, analisando potencialidades/dificuldades de cada aluno face a determinada situação específica em contexto de aprendizagem. Cabe-lhe a ele colocar hipóteses, testando assim os limites de cada aluno (e consequentemente alargando as suas ambições), mas em simultâneo selecionando as melhores possibilidades de sucesso. Cabe-lhe também a tarefa de orientar os alunos durante o estabelecimento dos seus próprios objetivos (ajustando expectativas) e mediando todo o processo que se quer direcionado para esses objetivos, contextualizando os percursos passados com os atuais, integrando-os na aprendizagem. Do aluno requer-se a sua participação ativa, conceito que implica necessariamente a atribuição de um significado pessoal atribuído à aprendizagem de determinado conteúdo. Pretende-se que o aluno seja capaz de estabelecer relações entre conteúdos diferentes, e até de disciplinas distintas, mas direcionados para a sua concretização prática na vida real de cada um, promovendo assim uma aprendizagem significativa. O professor deve estar atento e orientar todo este processo (ou na verdadeira acepção da palavra, todo este caminho), usando estratégias diversificadas.
Devíamos tentar que fosse fundamentalmente o aluno a instigar e direcionar o seu próprio processo educativo, atuando nós maioritariamente como um facilitador da aprendizagem, analisando potencialidades/dificuldades de cada aluno face a determinada situação específica em contexto de aprendizagem. Devíamos tentar que se colocassem hipóteses, testando assim os limites de cada aluno (e consequentemente alargando as suas ambições), mas em simultâneo selecionando aquelas que parecem ser as melhores possibilidades de sucesso. Devíamos tentar orientar os alunos durante o estabelecimento dos seus próprios objetivos (ajustando expectativas, etc.) e mediando todo o processo que se quer direcionado para esses objetivos, contextualizando os percursos passados com os atuais, integrando-os na aprendizagem. E já que vamos lançados, porque não fomentar a partilha de opiniões e de conhecimentos entre colegas, já que esta é talvez uma das mais eficazes ferramentas de aprendizagem? Claro está, esta abordagem exige assim uma mudança significativa na organização de todo o processo educativo, a começar pela mentalidade dos próprios docentes.
Assim, urge repensar a prática pedagógica à luz de uma nova perspetiva, mais real, mais sintonizada (afinada, se quiserem) com as pessoas, mais reflectida. Mais séria, no fundo. Quem sabe se assim orientando toda a educação em Portugal.
14-03-16
Carta aberta a um cabrão.
Depois de ler inúmeras críticas ao filme "Mon Roi", depois de um mês profícuo em notícias relacionadas com as relações abusivas, e depois de ser confrontada com algumas lutas de pessoas que me são muito queridas, percebi que (ainda) é urgente falar-se do que são relações abusivas. A todas as mulheres que possam estar hoje nesse labirinto, aqui vai um exemplo daquilo que lhe deviam dizer mal chegue a casa. Saibam que como todos os labirintos, há uma saída; e há muito melhor à vossa espera.
"Olá. Sei que ainda te lembras de mim todos os dias. E também sei porquê. Compreendo que não deva ser nada fácil viver com facto de saber que a (única?) gaja que te deu com os pés continua alegremente a sua vida por aí. Calculo que seja difícil de digerir que uma miúda frágil e insegura foi capaz de ver o tamanho da tua pequenez. Imagino que custe saber que há alguém que sabe exactamente a amostra de homem que tu és, e que não podes fazer absolutamente nada para a iludir, mascarando isso. É tramado sentires-te assim, impotente e fraco, não é?
Como já se passou algum tempo, gostava de te dar algumas novidades. Talvez não saibas que entretanto a minha vida mudou; se me visses hoje, tenho sérias dúvidas se reconhecerias a miúda insegura de outros tempos. Já ninguém decide o que posso ou não vestir, porque já ninguém que eu escolha para estar ao meu lado ousa sequer tecer as insinuações que tu tecias. Já não me sinto uma louca por ver a vida duma forma distinta das que conheces, até porque não conheces tantas assim, e já não tenho problemas com o ser possuidora de uma inteligência claramente superior à tua. É que agora estou rodeada de pessoas que valorizam isso como um traço de carácter, que ao invés de sentirem em mim oposição, me vêem antes como uma mais-valia nas suas vidas. Há já muito tempo que não tenho de lidar com gritos, recriminações, acusações ou insultos numa base diária, e isso devolveu-me a confiança que me é natural. Talvez por isso tenho atraído pessoas cada vez mais interessantes para a minha vida, talvez por isso olhem para mim e me vejam uma líder nata e inquestionável. Também não me recordo quando foi a última vez que me trancaram, seja num carro, em casa ou numa varanda no frio da noite. São coisas que simplesmente não acontecem mais: é que sabes, agora dou-me com gente com menos perturbações mentais.
Gostava que soubesses que actualmente percebo bem melhor esta história do sexo, e se já apreciava, fiquei a gostar muito mais. É que sabes, desde que só faço aquilo que quero fazer, desde que ninguém me obriga ou coage a nada, tive oportunidade de descobrir coisas muito interessantes, posso garantir. Nunca mais me aconteceu passar noites em claro, numa insónia constante provocada por um terror inclemente de ti. Também passei a comer muito melhor, sem receio nenhum de possíveis consequências estéticas. Vê lá tu que descobri que se pode amar alguém pelo gosto que tem em comer! Se nunca gostaste que eu roubasse olhares por onde quer que passasse, agora ias odiar muito mais: é que sabes, desde que passei a alimentar-me como uma pessoa normal, em ambos os formatos, ganhei curvas bem mais torneadas, e passo bem menos despercebida. Só que a diferença é que quem agora caminha ao meu lado sente orgulho nisso, enquanto pensa na sorte que tem em ter uma gaja destas. Posso-te dizer que desde que te larguei, tal qual se larga uma droga que nos consome de dentro para fora, me tenho tornado uma pessoa a cada dia melhor, sem a menor preocupação acerca disso poder ferir as susceptibilidades de quem caminha a meu lado. Não estranhes pois o meu sorriso aberto quando me vês: estar bem acompanhada tem destas coisas.
Como já se passou algum tempo e nunca antes tive a oportunidade, gostava também de te dizer algumas coisas. Só é aceitável ser um fedelho mimalho e egocêntrico quando somos crianças. Até aos 8 anos, diria eu. Não quando já somos um jovem adulto, e certamente não quando já somos um adulto pai de filhos. Outra coisa: será que pensavas honestamente que “pôr-me a pata em cima” iria alimentar o teu ego? Terias tu uma auto-estima assim tão baixa? É que ninguém diria, afinal sempre foste um grande artista (ainda que por algum motivo, ninguém to pareça reconhecer). Vou-te ensinar uma coisa importante: quando se ama, ninguém tem que ser melhor do que ninguém. É-se o que se é, e ama-se o outro precisamente por ser assim. Convém também que saibas que não adiantou nada hostilizares as pessoas que fazem parte do meu mundo: elas já cá estavam antes de ti. E por muito que te tenhas esforçado por me isolares do resto do mundo, ele esteve aqui à minha espera quando te decidi dar um chuto. Creio que também deves desconhecer o conceito de lealdade: sendo fiel ou não (até porque nunca fui uma puritana) há limites para a maneira como atraiçoas alguém. Se há coisa que não podes mesmo fazer, é injuriar-me e tecer mentiras a meu respeito para te conseguires fazer de vítima e assim manipular outra perdida como eu fui, e muito menos podes pôr-me doida enquanto te escondes em mentiras e negações. Ser-se homem é isso mesmo, assumir os erros e pedir desculpa; lamento se nunca antes ninguém to disse.
Gostava de te dizer embora a estupidez nem sempre seja reconhecida pelos próprios portadores, a filha da putice não entra na mesma categoria. Não adianta desempenhares o papel de “coitadinho” tão bem como sempre soubeste desempenhar, ou tentares ser meu amigo. Não adianta vires atrás de mim, ou arranjares motivos para me falares. A minha resposta vai ser sempre o não ou o completo nada que tu já tão bem conheces, e a quem nos rodeia (pelo menos aqueles que importam), nunca vais conseguir enganar. Tu sabes exactamente o cabrão que foste e o cabrão que ainda és, e quem convive contigo sabe disso. Só assim se explica que ainda hoje persigas “presas fáceis”, que tanto podem ser mulheres com muitos problemas de auto-estima, como adolescentes recheadas de daddy issues acabadinhas de concluir 18 anos (que se há coisa que não és, é burro). Acredita, toda a tua existência e a necessidade que tens de a colorir com as mais elaboradas fantasias, só nos demonstram a todos o que tu verdadeiramente és: um canalha com mais cérebro que juízo, um atrasado mental misógino e profundamente perturbado que precisa de sentir um controlo total sobre a existência de quem está ao lado para se conseguir sentir homem, um cretino de causar repulsa a qualquer uma por ousares tentar convencer alguém de que o que tens para oferecer é amor, quando tudo o que dás é pura agonia, alguém tão minúsculo que nunca mereceste sequer pisar o mesmo chão que eu. Ah, e com uma pila pequena. No fundo, já só existes num lugar recôndito da minha memória para onde te exilei da minha vida. Mesmo que nos cruzemos todos os dias. Porque tu que hoje convives comigo, és completamente inexistente, uma ausência e um vazio que não consegue despertar qualquer sensação em mim, por mais insignificante que seja. Aquilo que vejo quando nos cruzamos é então apenas isso mesmo: um vazio (com pernas).
Fomos namorados, amantes, casal assumido, amor clandestino, fomos o quê mesmo? É que já não me lembro. Lembro sim da última coisa que me disseste: nunca ninguém te vai amar como eu. É que sabes, ainda bem: a intenção é mesmo essa."
You go, girls.
06-03-16
Vamos fazer um safari?
Têm-me dito que as minhas crónicas revelam uma amargura muito (talvez demasiado) pungente. Isso propiciou uma reflexão sobre o meu universo quotidiano, na medida em que este se assume um factor de influência muito forte. Nessa reflexão consegui reconhecer que este está também recheado de episódios caricatos, propiciadores dumas valentes gargalhadas. Esta semana, por exemplo, deparei-me com um facto curioso: é de mim ou o universo laboral de cada um está preenchido com uma “fauna” muito heterogénea mas que é, ao mesmo tempo, muito semelhante entre si? Voltando a usar a ignóbil analogia com o mundo animal, é como se mudasse a selva mas aventurando-nos num safari, descobrimos a mesma categoria de (bestas) animais. Como há dias em que tudo o que nos apetece é o maldizer e o achincalhar para purgar a amargura, pareceu-me apropriado que concedesse a mim própria o guilty pleasure de ilustrar, sempre com recurso a esta analogia com o mundo animal nada subtil, os vários tipos de colegas de trabalho que preenchem os dias de grande parte da população. A AVESTRUZ Este colega é respeitado no meio ambiente, o local de trabalho é o seu habitat natural. Quando o afrontam, actuando de formas que considera erradas, pode até reagir com violência. Mas é temporária. Porque este colega, apesar de ser o primeiro a dar conta de alguma injustiça ou mal-estar, é também invariavelmente o primeiro a enterrar a cabeça na areia e a assim evitar confrontos. Este colega é aquele que sempre se sente lesado com alguém, mas que por algum motivo parece ser sempre incapaz de confrontar o causador do seu desagrado, e prefere assim continuar a esconder-se assustado quando este aparece, mesmo que minutos antes tenha estado a vociferar contra as suas tão grandes falhas de carácter. Em dias normais, este tipo de colega é completamente inócuo. Em dias em que parecemos acordar daquele torpor tão habitual no quotidiano português, este tipo de colegas consegue ser altamente irritante, sem que nada façam de diferente. Uma lástima, para eles claro está, que passam os dias neste limbo entre um sentimento de profunda revolta e uma subserviência conscientemente alheada da realidade. O ELEFANTE Todos nós reconhecemos em pelo menos um colega de trabalho um idealismo nobre e puro como já não parece existir. E tal e qual um paquiderme volumoso, este colega enche as salas onde entra. Enche tanto que por vezes se torna complicado respirar lá dentro. É que com tantas utopias que lhe jorram boca fora, torna-se evidentemente complicado mover-se e de facto fazer alguma coisa, trabalhar diria eu, e isso gera um ligeiro desconforto entre os restantes. Por norma são aqueles colegas que parecem ter uma excelente opinião sobre tudo, mas que por algum motivo nunca chegam de facto a concretizá-las, principalmente porque analisando os seus resultados não se verifica a taxa de sucesso que associaríamos a tão nobres ideais. Estes colegas parecem ser intocáveis na sua imponência, enquanto observam a vida a desenrolar-se na selva laboral. Só um grupo de leões muito bem organizado poderá algum dia ousar tentar atacar este descendente do mastodonte! E cometer tal ousadia é libertar uma fúria verdadeiramente destruidora: estes colegas, uma vez enfurecidos, perdem o iluminado discernimento que lhe atribuem e arrasam o que estiver dentro do raio da onda de choque. Não queiram irritar um elefante: por se ver tão acima dos outros, naturalmente move-se num ritmo ligeiramente diferente, não há motivos para o achar desajeitado e inadequado, nobreza de carácter é que é assim. A COBRA Este colega parece envenenar o próprio ar que respira. É como se de um réptil se tratasse, deslizando furtivo por entre os pingos da chuva. Que é como quem diz, é aquele colega cuja real opinião parece ser sempre desconhecida, uma vez que tanto está a enaltecer um outro colega, como no momento seguinte, se nisso existir algum ganho próprio, já está a criticá-lo sem misericórdia. Furtivo, consegue mover-se sem que mal se dê pela sua presença, infiltrando-se em todas as conversas alheias por se mostrar solidário com as opiniões manifestadas. Mas no entanto, se no momento seguinte for necessário contradizer as mesmas com um outro grupo de colegas discordantes, não hesitará em entrar em contradição. Ou mais, se sentir a necessidade de atacar uma presa mais incauta, não hesitará em usar essas conversas para colocar em causa o outro. Tal qual como no reino animal, este colega anda atrás de presas fáceis, mais fracas, e exactamente pelo mesmo motivo: para se alimentar delas, nutrindo um ego normalmente maior do que a grandeza de carácter adjacente, com manifestações falseadas de um pseudo-afecto. Felizmente, são fáceis de afugentar: umas vassouradas e luzes brilhantes que os exponham costumam solucionar eventuais problemas. O LEÃO Este tipo de colega acaba por tornar a selva laboral num habitat mais equilibrado e assim mais suportável. São aqueles que, possuidores dum espírito de liderança notável, conseguem agregar em seu redor os restantes em torno do bem comum, pois conseguem agradar a muitos colegas diferentes, com opiniões e posturas que muitas vezes esbarram entre si. Por algum motivo, este colega consegue ser um farol na escuridão para quase todos os outros, agradando a gregos e troianos, e dirigindo-os a todos em prol de um objectivo comum. E sejamos honestos: este colega gosta não necessariamente de agradar, mas gosta sim de ser agradável. É vaidoso, pronto, é o verdadeiro rei da selva: é ele que parece fazer tudo acontecer, ao criar e dinamizar equipas e instigando a acção das mesmas, e conseguindo assim colocar as engrenagens a girar. Lamentavelmente, e como é o rei da selva, é sempre o culpado de tudo. Não há nada que aconteça que não tenha sido orquestrado por ele, naturalmente. Mesmo que ele tenha estado simplesmente a dormir a sesta depois duma boa refeição. A HIENA Estes são os colegas de que todos têm pena, uma espécie de compaixão degenerada à força de um confronto constante com a sua pequenez. São aqueles colegas que andam sempre atrás dos leões, que é como quem diz, daquela malta que de facto faz as coisas acontecerem, à espera de se poder alimentar dos restos. Sempre preenchendo as horas dos dias naturalmente infindáveis com aquelas risadinhas vazias que lhe são características, torna-se difícil reconhecer nestes colegas qualquer mérito ou lucidez. Ao mesmo tempo, são aqueles a que a vida parece sorrir poucas vezes, o que instila neles uma atitude de permanente vitimização. Sim, porque se a vida não lhes sorri, a culpa não será certamente deles! E assim passam os dias a disseminar um veneno insidioso entre os demais colegas, motivando intrigas recorrentemente, enquanto se vão queixando de tudo (e de todos). Já repararam que estou sempre a falar no plural? É porque andam sempre em matilha, nunca actuam na solidão, embora o seu problema seja esse. São pequeninos, um pouco inúteis vá, e tentam mascarar isso com uma falsa afabilidade que não consegue convencer os demais: como tendencialmente não são muito inteligentes, tendem a ser irascíveis, pondo facilmente a descoberto a máscara pobremente construída. Uma chatice, porque de tempos a tempos, obrigam os leões a escorraçá-los para longe, na tentativa de salvaguardar o resto da selva, o que tende a destabilizar um pouco o clima. O BABUÍNO Todos nós temos aquele colega de trabalho simplesmente insuportável. Aquele colega cujo único propósito de existência parece ser atormentar os dias dos restantes, na medida em que não faz mais que exibir a sua imaturidade perante os demais. Este é aquele colega cujo narcisismo e egocentrismo estão em níveis tão elevados, que é de admirar como não tropeçam na sua própria grandeza e espetam com o peito insuflado no chão. Revela-se narcisista na medida em que só os seus elevados padrões de qualidade e de mérito é que são válidos, naturalmente um espelho da sua própria competência. O seu egocentrismo nota-se pela insistência em transformar todos os mais inocentes acontecimentos em oportunidade de reforçar a mensagem de que tudo gira à sua volta (ou se não gira, talvez devesse girar). O que é profundamente irritante neste tipo de colega é que, por norma, o gap entre a imagem que pinta de si próprio e a realidade é gigantesco, e origina episódios caricatos que colocam em evidência a sua óbvia incompetência. Pode inclusive reagir com agressividade, uma vez confrontado com a noção de que não é o rei da selva. Nesses momentos, poder-se-á vislumbrar a sua infantilidade e irascibilidade na sua forma pura, uma vez que tendencialmente age de maneira impulsiva, agravando o erro e empurrando as culpas para outro colega mais distraído.
Quando paro para pensar (o que felizmente não acontece muitas vezes) o pensamento foge-me para aqui. Qual enviada da BBC Vida Selvagem, dá-me para observar o que me rodeia como se de um micro habitat se tratasse, com lentes normalmente parvas e naturalmente deturpadoras. Se no entanto este pseudo-documentário vos tiver trazido alguma utilidade, depois digam-me qual foi (a besta) o animal com que se cruzaram no vosso safari desta semana.
29-02-16
Carta aberta a um encarregado de educação
Tem dias em que ser professor é demasiado difícil. Dias em que apetece desistir de tudo e fazer outra coisa qualquer. Sabia? Eu gostava mesmo de lhe explicar porquê. Ser professor do ensino artístico especializado actualmente é profundamente desgastante: somos mal remunerados pela actividade que desenvolvemos, estamos numa luta contínua e extenuante para poder trabalhar em condições dignas (muitas vezes até com as próprias escolas que nos albergam!), e lidamos numa base diária com a mais abjecta falta de respeito e de educação. A fibra de que somos feitos permitiria lidar com a actual precariedade laboral, caso sentíssemos a real gratidão por parte de quem todos os dias tentamos educar. Não ter nem uma coisa nem outra, torna o exercício desta profissão num masoquismo permanente que nos rouba toda a energia de que necessitaríamos para a vida. Sim, nós também temos uma vida, temos família, gostamos de passear, gostamos de sair, enfim, somos pessoas como as outras. Eu sei, ninguém diria!
Conseguimos reconhecer no ensino três grandes pilares sobre os quais assenta a base de toda a aprendizagem: o aluno, o professor, e claro, a família. Sim, vocês, esses tão “respeitados” e quase temidos encarregados de educação. Daqui se depreende que uma criança só será bem-sucedida se tiver uma série de condições mínimas, que passa por uma boa escola, com bons professores capazes de impulsionar uma motivação intrínseca pela aprendizagem, mas também passa por ter encarregados de educação atentos, que acompanhem e incentivem o seu desenvolvimento. Estruturalmente falando, desde sempre e em qualquer vertente do ensino existe um grande fosso entre professores/escola e pais/casa, que se deve a muitas e diferentes características, seja relacionadas tanto com a comunicação em si, como com os diferentes contextos socioeconómicos. No ensino da música conseguimos demarcar ainda mais esse fosso, pois conhecemos os encarregados de educação dos nossos alunos logo em desvantagem, quando comparados com os restantes professores. Se o ensino regular é obrigatório até ao 12º ano, na Música, nunca o chega a ser. Na sua essência, a Música representa uma opção tomada por cada um, que implica grandes quantidades de tempo, energia, dedicação, vontade e acompanhamento. Ora, qualquer professor sabe que numa grande parte dos cenários que diariamente nos aparecem, poucos são aqueles que tomam essa decisão conscientes destas implicações, e não sendo obrigatório, deparamo-nos com a dificuldade de cativar alunos (e pais) quer para a continuidade do estudo da Música, quer para as responsabilidades que lhe estão inerentes.
Desculpe-me lá, mas tenho que o responsabilizar também pelo sucesso/insucesso dos seus filhos. Posso dizer-lhe que são incontáveis os casos em que tanto encarregados de educação como educandos se envolvem no ensino artístico especializado sem qualquer consciência das suas implicações. Eu explico: no contexto em que vivemos, não estamos à espera que cada criança que passa por nós se torne num músico profissional, nem é nisso que estamos a pensar quando dizemos exasperados que os alunos têm de dedicar um estudo diário ao instrumento. Urge clarificar que quando uma criança decide começar a aprender um instrumento, está a comprometer-se a trabalhar afincadamente para atingir esse objectivo: APRENDER UM INSTRUMENTO. Não está a “experimentar” um instrumento, a ver se funciona, nem a aumentar uma lista interminável de atividades extracurriculares com mais uma atividade lúdica que lhe confira algum status. Está a alargar os seus horizontes pessoais e académicos, dedicando tempo e energia a mais um saber, que devia valer o mesmo que os restantes saberes. Aquelas vantagens todas da aprendizagem de um instrumento, enunciadas num sem-número de investigações, só se concretiza se a criança estiver de facto a aprender um instrumento, e para o fazer, ela necessita de lhe dedicar um estudo diário. Lamento se ninguém vos explicou isto antes. Há que criar condições a esta criança, que mais que escolher uma boa escola, passa por investir num instrumento de qualidade, em idas regulares a concertos, em comprar CD’s de música e principalmente, por acompanhar e incentivar os seus esforços. A Música não vive tanto de “inspiração” e “talento” como se gosta popularmente de acreditar, mas sim de dedicação, responsabilidade e trabalho, muito trabalho.
É da sua responsabilidade como pai quando matricula o seu filho numa escola de música, assegurar que acompanha o seu trabalho nesta área da mesma forma atenta como acompanha o seu restante percurso académico. Desengane-se quem pensa que a Música pode ser proposta a uma criança como um hobbie prazenteiro, e que por isso mesmo não implica o mesmo tipo de esforço e acompanhamento que implica a escola regular. Urge desmistificar a aprendizagem musical: o seu filho, na grande maioria das vezes, não vai querer largar o iPad para ir estudar piano. Quando lhe disser que o tem que fazer todos os dias, vai espernear e fazer birra, possivelmente fugir usando todo e qualquer subterfúgio. Quando lhe chegarem a casa resultados pouco impressionantes, vai argumentar que não tem tempo para estudar, entre a escola, o centro de estudos, a piscina, o futebol ou o ballet, e vai querer desistir. Pelo menos de três em três meses. Sabe porquê? Não é porque não gosta, nem porque o professor/escola não está a fazer o seu trabalho como deve ser. É porque dá trabalho: estas crianças nasceram num mundo muito mais rápido que o seu, em que tudo é imediato e está à distância de um clique, em que se abandona facilmente um jogo se este não conseguir manter um nível alto de estímulo de forma constante. Daí que se possam sentir ligeiramente desmoralizadas quando percebem que não vão aprender um instrumento da mesma forma tão imediata e fácil como lhes venderam nas app dos tablets. Cabe ao Encarregado de Educação ser firme nestes momentos, responsabilizar a criança pelo percurso que escolheu e incentivar, acompanhar e reforçar o estudo. Não chega dizer conformado “Tens audição para a semana, não devias ir estudar?”. Há que pressionar um pouco, estabelecer um horário de estudo e exigir que este seja cumprido. Só assim a criança conseguirá resultados na Música, e só mediante estes resultados se irá sentir motivada para começar a ser mais autónoma e irá manifestar uma real afeição pela Música. Aliás, posso acrescentar-lhe que só assim estará a educar um ser humano realizado, motivado, consciente e em última análise, quiçá mesmo feliz.
Agora deixe-me dizer-lhe: quando me envia o seu filho recorrentemente sem material para as aulas, sem sequer ter tocado no instrumento uma única vez durante a semana, está a educá-lo mal. Primeiro está a dizer-lhe que há professores de primeira e outros de segunda, e isso é mentira (mesmo que possa eventualmente pensar doutra forma). Não menospreze nem subestime a quantidade de tempo, financiamento e energia que investi ao longo de 20 anos (20 anos!) de escolaridade para chegar até aqui e desenvolver esta actividade. Não somos mais mas também não somos menos que um professor de matemática e como tal, merecemos o mesmo tipo de tratamento; tenho sérias dúvidas se permitiria que o seu filho fosse para a aula de Matemática recorrentemente sem o TPC feito (mesmo que estes sejam quase uma barbárie nos dias de hoje). Por outro lado, peço-lhe o que peço a qualquer aluno meu: exercite por favor a sua inteligência. Acha realmente que com uma aula semanal de 45 minutos eu consigo que qualquer criança toque um instrumento (seja ele qual for), se não existir uma real continuidade do trabalho desenvolvido na aula depois em casa, numa base que se quer regular? É que se acha está profundamente errado, e não há nada que possa fazer por si.
Tem dias em que ser professor é demasiado difícil. Dias em que apetece desistir de tudo e fazer outra coisa qualquer. Sabia? Espero ter-lhe conseguido explicar porquê. Afinal, sou professora, e vivo para educar.
21-02-16
Dívidas por saldar
As últimas semanas têm sido muito profícuas em temas sociais/políticos/económicos dignos de relevo. Tantos e tão óbvios que o meu ritmo de escrita não os consegue acompanhar, impossibilitando-me de os comentar a todos com a necessária minúcia. Ainda assim, vislumbro ao de longe um fio condutor que parece relacionar e interligar todos eles, e aquele que me parece ser o foco de discussão mais interessante é precisamente esse. Nos diferentes acontecimentos, quer os maiores e mais óbvios como nos mais pequenos e mais subtis, espanto-me ao observar um padrão de comportamento humano inacreditável. SOMOS CONIVENTES. Pisam-nos, exploram-nos até ao tutano, manipulam-nos e fazem-nos passar por burros, a ponto de vivermos numa declarada ignorância sobre o que se passa à nossa volta. É assustador perceber que há um discurso difundido para nos levar a ser menos atentos e argumentativos, mais estúpidos vá. E as dinâmicas sociais actualmente estão tão bem montadas que se encarregam de fazer acontecer a “lavagem cerebral” necessária para nos voltar a encarreirar ordeiramente no rebanho, caso consigamos eventualmente formular um pensamento capaz.
Exemplos, tantos e tão óbvios, todos nacionais: o primeiro, a mais recente proposta para despenalizar a morte assistida (onde estão incluídos a eutanásia e o suicídio medicamente assistido). Sejam contra ou sejam a favor, mas sejam por favor, e assumam o que são. A discussão do tema em si não é o que me afronta, mas sim o logro criado em redor da mesma. A direita política do nosso país, compreensivelmente e obviamente contra esta alteração da lei, podia simplesmente assumir a sua posição. Não é assim tão difícil ser-se frontal e honesto, e é para isso que lhes pago com os meus impostos. Daí se compreende que me afronte visceralmente esta tentativa duma “não-opinião”, recorrendo a um ideal democrático que é na verdade uma falácia. Ora pois a esquerda, radical naturalmente, não quer aceitar um referendo? O referendo é a democracia a funcionar! É dar voz ao povo! É responsabilizar o povo pelas decisões políticas e ideológicas! Seria, de facto, se não continuassem a insistir para que se torne num instrumento de opressão. É que colocar a uma nação uma decisão tão simples como permitir ou não um direito humano fundamental, em que a larga maioria dessa nação é fruto duma educação que falhou redondamente o alvo ao produzir meros autómatos acéfalos e acríticos, incapazes por isso de sequer conseguirem colocar tão nobres assuntos em perspectiva, é para mim a expressão máxima daquilo que é anti-democrático. Eu ilustro: eu conheço mesmo muita gente estúpida. E não falo duma estupidez ocasional, face apenas a alguns assuntos, como também eu possuo. Falo duma estupidez crónica e absolutamente abjecta. Nunca me passaria pela cabeça delegar a essas pessoas a responsabilidade de decidirem se eu, como mulher que sou, posso votar, ou posso trabalhar, ou posso conduzir. Porque várias decidiriam que não. Da mesma forma, também não lhes permitiria a decisão acerca do casamento entre pessoas de diferentes etnias, ou da obrigatoriedade de frequência do ensino, porque sei que iriam decidir que não. Estão a perceber onde quero chegar? DIREITOS HUMANOS NÃO SE REFERENDAM.
Daí que insistir nisso como se fosse uma real opção me pareça uma tentativa medíocre de mascarar as suas próprias opiniões, e mais uma vez, não é para isso que lhes pago. Sejam contra, ou se quiserem sejam a favor, mas limitem-se a fazer o vosso trabalho, em sede própria e pelos canais certos, ao invés de tentar lançar a dúvida e a confusão. Seguindo esta linha de pensamento, surge o segundo exemplo: nas últimas duas semanas tenho visto estalar uma revolta declarada em relação ao OE 2016. Por um lado, agrada-me ver que as pessoas ainda possuem energia para achincalhar e o maldizer, e conseguem ser inventivas o suficiente para criar graçolas como o #ConselhosDoCosta. Por outro, se pensarmos nos motivos, o caso muda de figura. Onde estiveram estas pessoas nos últimos 4 anos?! Talvez a minha situação pessoal tenha sido caso único em Portugal, não sei, mas eu vi o meu ordenado a diminuir ano após ano com a sobrecarga de impostos directos a que esteve sujeito, vi os serviços públicos de educação, saúde e justiça a falharem cada vez mais e a exigir mais retorno financeiro (!!!), vi familiares idosos a ver as suas reformas reduzidas a nada, com uma lista de prescrições médicas a custar o dobro, vi a minha situação laboral a tornar-se altamente precária, sem que isso tenha tido consequências no meu desempenho. Sou só eu que acho que com os descontos no meu vencimento, devia ter acesso a uma consulta de urgência no hospital sem ter que pagar 20€?! Sou só eu que acho que devia ter acesso a uma educação pública de qualidade sem ter pagar propinas?! Sou só eu que acho que devia circular em estradas com as condições mínimas de segurança?! Sou eu que acho que não devia ter de pagar tarifas tão caras de electricidade ou de água?! Certamente serei, porque uma larga fatia da população parece estar muito mais indignada com a subida do imposto no tabaco ou no gasóleo, todos muito chocados com o conselho do Primeiro-Ministro para moderar o recurso ao crédito (que só por acaso, é o grande motivo pelo qual estamos todos nesta alhada). E são as mesmas pessoas que há uns meses se queixavam que tinha regressado o governo daqueles que “dão tudo”, indiferenciadamente, de forma irresponsável, perseguindo utopias. Será assim tão difícil de perceber a linha ideológica que está aqui presente?! Eu explico: tudo depende daquilo que se valoriza. Eu, como esta malta que anda com estas ideias malucas na cabeça, valorizo ser remunerada condignamente pelo trabalho que desenvolvo, valorizo ter acesso livre e democrático, e por isso GRATUITO, a tudo o que se considera de primeira necessidade. Sou (somos) contra a mercantilização de serviços públicos da mais básica subsistência, como a saúde e a educação. Para isso, as receitas têm de vir doutro lado, não dos salários desta classe média que noutro país nem sequer teria esse nome. Assim, prefiro que subam os impostos indirectos, desde que assegurando estes serviços, sim. Eu e qualquer pessoa minimamente inteligente, minimamente preocupada com o outro.
Por esse motivo, não gostei mesmo nada desta tentativa de pressionar o governo com o “medo” a Bruxelas, falando dum braço de ferro que nem sequer existiu. Quero lá bem saber se o ministro das finanças alemão acha que devíamos ter prosseguido na anterior rota. Eu não sou alemã. Eu detesto ser manipulada como sou pela comunicação social portuguesa, esta amostra de jornalismo que ignora a mais básica das regras: a isenção e a imparcialidade. Odeio perceber que estas manobras da direita surgem apenas para ocultar as suas próprias argoladas, como por exemplo a de terem vendido a medida relativa à sobretaxa de IRS como provisória aos portugueses, e definitiva para a Europa. Vamos mais longe, por favor, esmiuçando o terceiro e último exemplo: “Esperamos que seja a União Europeia a pagar as nossas dívidas, os nossos erros e as nossas asneiras.“ É isto que ouvimos dizer tudo o que é comentador político em Portugal, em tudo quanto é comunicação social, e inclusive já ouvimos dizer os nossos colegas ou até o vizinho da frente. Só que há aqui um dado que se varreu para debaixo do tapete: A DÍVIDA FOI FABRICADA. É, foi isso mesmo, a dívida não existe, não é real. Foi fabricada para salvar a banca. Principalmente, pasmem-se, a banca alemã (aposto que por esta ninguém estava à espera, hã?). Começou nos EUA e previsivelmente alastrou para a Europa. O problema é que as nações em que isto aconteceu (e acontece) quiseram resgatar os bancos, e nesses resgates estão envolvidos milhões, não propriamente trocos que se pudessem facilmente dispensar dos orçamentos de estado. Assim, os Estados endividaram-se para poder “resgatar” a banca, e o mais pérfido de tudo isto é que nem uma década depois de tudo isso (ou seja, demasiado pouco tempo para que nos pudéssemos ter esquecido) a mensagem propagandeada é outra: a culpa é NOSSA, é das próprias nações que se endividaram e perturbam assim constantemente os mercados. Parece uma anedota, não parece? Criaram-se DELIBERADAMENTE buracos financeiros atrozes em nações inteiras (que por algum motivo, parecem ter deixado de ser soberanas aquando da formação da União Europeia) para alavancar (olhem eu a usar uma daquelas expressões que o nosso cenário político tanto gosta de utilizar) uma série de bancos, através de empréstimos monumentais com taxas de juro completamente IRREAIS, e quase uma década mais tarde, a culpa não é da banca, é do estado que a resgatou. Tanto não é que ainda hoje basta ouvirem-se rumores da falência de mais um banco e os mercados “tremem”. Tanto não é que só em Portugal já tivemos pelo menos 3 escândalos acerca de bancos falidos cujos prejuízos de biliões (!!!) foram pagos pelo estado. É natural que depois não haja dinheiro para futilidades como subir o ordenado mínimo, reduzir os horários semanais para 35horas nos privados, abolir as taxas moderadoras...enfim. E isto só para falar dos nossos problemas internos, porque se quisermos ir mais longe, verificamos não só andamos a “aparar o pião” aos banqueiros influentes amigos da nossa mui nobre classe política (os verdadeiros donos disto tudo, acrescento), como também às novas e mais recentes amizades espalhadas pela Europa. Já é público que os resgates de Portugal e da Grécia serviram para salvar a banca alemã, não estou a inventar nada. O próprio FMI já veio dizer que as dívidas têm de ser renegociadas. Eu sei que não sou comentadora política, e muito menos economista, mas sei ler. E partir do momento que vêm a público dados que comprovam que os “resgates” (só chamar-lhe resgate é criar toda uma mentira pérfida na qual nos envolvem) provenientes do BCE só chegam aos países “endividados” como Portugal, depois de passar por bancos alemães que lhes adicionam mais outra taxa de juro gigantesca, não se pode dizer que isto seja fantasia ou teoria da conspiração. É verdadeiramente a Europa em que nos movemos, uma União que surge nitidamente relevando os objectivos a que se propunha numa fase inicial para 2º plano, para assim perseguir uma agenda diferente e muito menos nobre.
E o que é mesmo engraçado é que nós continuamos todos aqui, muito ordeiramente no nosso rebanho, insurgindo-nos contra quem não nos quer cordeiros mansos, endeusando antes o nosso opressor, chamando-lhe de pastor. Afinal, já dizia Nietzsche: “ a vida mais doce é não pensar em nada”.
13-02-16
Adrenaline Junkies: a droga da minha geração.
É sexta-feira à noite: ela está prostrada no sofá olhando o ecrã da televisão, completamente inerte. Amanhã é fim-de-semana, não existem obrigações de natureza profissional ou de qualquer outra, e ela pode fazer o que lhe apetecer: pode passear, convidar alguém para sair, ir ver concertos ou ir até ao cinema, ir ver aquela exposição nova que já foi inaugurada, ou ficar por casa no aconchego da família. No entanto, no seu devaneio apagado ela nem sequer contempla nada disto. Ela só vê o vazio, o nada que fazer, a inércia proveniente do cansaço extremo. Ela é profundamente infeliz. Ela é uma jovem com menos de 30 anos, que tirou uma licenciatura depois de 12 anos a estudar, e um mestrado que lhe disseram ser imprescindível, e não contente está agora a ponderar uma pós-graduação. Afinal, num mundo altamente competitivo o conhecimento é uma arma de arremesso na luta diária pela mais básica subsistência. Tem casa própria, dir-se-ia até um pequeno núcleo familiar, composto pelo namorado que facilmente lhe cobiçam. Ela tem um emprego mais ou menos estável, decentemente remunerado ainda que não em demasia: não convém acreditar em utopias que façam ambicionar uma outra vida. Ela tem tudo para ser feliz, dizem-lhe. Mas não é, porque esconde um segredo: ela tem um vício arrasador que lhe consome a existência. As horas de todos os dias são passadas na procura pelo próximo chuto, sem que ela disso sequer se aperceba. As que não são, como as desta sexta-feira à noite, são as horas paradas da ressaca, em que o corpo se desliga num vazio que os outros confundem com ócio, mas que não o é. São horas de um nada que a consome, presa a um vício sem droga e sem nome. Não, ela não é feliz e não tem projectos de vir a ser. Ela é viciada em adrenalina.
Parece desvario meio alucinado e quase que podia ser, se não fosse verdade. Nestas últimas semanas, graças a conversas intensas com alunas mais velhas, que espero terem sido de alguma utilidade, dei-me conta do quão verdadeiramente hipotecada está já a minha geração, e de como estamos já a enterrar a próxima no mesmo buraco. E esse buraco que fomos cavando ao longo do tempo tem um nome: vício em adrenalina. Sem hipocrisias, pertenço a uma geração de adrenaline junkies.
Convém entender primeiro o que é isto dos adrenaline junkies: o termo usa-se primeiramente para descrever pessoas que estão sempre a perseguir aquela sensação de descarga de adrenalina associada a desportos de alto risco. Trocando por miúdos, refere-se àquelas pessoas que tanto estão a fazer bungee jumping, como a saltar de pára-quedas, ou a descer a montanha em BTT. Pessoas com um gosto declarado por actividades que envolvam uma grande probabilidade de perigo, normalmente associadas a algum desporto. A descarga de adrenalina produz uma sensação de euforia e de geral bem-estar que pode durar várias horas. Não parece nocivo, principalmente quando comparamos ao sedentarismo da grande maioria das pessoas, certo? Correcto, isto por si só não tem nada de mal. Mas e se toda a nossa existência se resumisse a isso? Se tudo o que somos se resumisse a procurarmos incessantemente essa sensação de euforia que tão habilmente confundimos com felicidade, aí já seria nocivo? O problema está no quão aditiva esta substância consegue ser, tal como outra droga qualquer, e a procura por essa euforia ou por alguma sensação que se lhe assemelhe pode ganhar contornos verdadeiramente perigosos, que extravasam largamente o domínio das actividades físicas. Falo concretamente de utilizar o drama como combustível constante de toda uma existência, que é como quem diz, de andar sempre à procura do conflito para o poder resolver. Isto tanto se verifica num mundo profissional altamente competitivo, e de um universo académico que nos prepara para isso mesmo, como em vidas pessoais movidas a stress manufacturado. Somos adrenaline junkies quando vivemos a vida sob uma perspectiva demasiado analítica, sempre à procura do que está errado, para isso escrutinando incansavelmente cada acontecimento da vida quotidiana. Ou quando deixamos que o trabalho ocupe todas as parcelas de nós, alimentando-nos exclusivamente dele. Se pensarmos bem, quantos dos nossos problemas são realmente problemas? Quanto do nosso cansaço não é por nós provocado? Numa época onde o telemóvel nos avisa quando cai um email relativo ao trabalho, quase que obrigando a um estado de alerta permanente, onde nos vão amarfanhado ao instilar um constante sentimento de culpa por tudo aquilo que já devíamos ter feito e ainda não fizemos, onde apenas se aceita a mais imaculada das perfeições em todos os campos das nossas vidas, isso transforma-nos em meros autómatos, cavalos com cenouras penduradas à frente dos olhos que nunca chegamos de facto a alcançar. Metas fictícias, destinadas a manter-nos a caminhar no carreiro.
Como é que chegamos a isto? Eu digo-vos como: formaram-nos ainda enquanto jovens adolescentes incutindo a ideia de que tínhamos de ser os melhores a tudo (todas as disciplinas na escola, todas as demais actividades), não importava a que preço e com que sacrifícios pessoais. Encafuaram aulas em cima de mais aulas, apoios que nunca o foram, mais trabalhos de casa para todas as coisas que devíamos ter visto nas aulas mas que não tivemos tempo para ver; cortaram-nos taxativamente todas as matérias artísticas/criativas ao longo do percurso escolar, até já não sermos sequer capazes de imaginar seja o que for; repreenderam-nos por cada resposta mais assertiva, chamando-nos de insolentes e de indisciplinados. Em casa, não nos deixaram brincar porque desarrumávamos a casa, nem muito menos tiraram o tempo para brincar connosco, relegando-nos para um espaço e um tempo onde a solidão era rainha; fizeram-nos cumprir todas as regras, como se elas tivessem que vir já parte do nosso ADN, e o medo das represálias foi-nos tolhendo o discernimento a ponto de passarmos a habitar numa ilusão por nós fabricada. Na realidade, a única coisa que nos fizeram foi retirar tempo, espaço e energia para viver. Sim, porque viver é muito mais que desenvolver uma actividade profissional (!), muito mais que ser educados, certamente muito mais que seguir a manada, como teimaram em querer transmitir-nos. É mesmo isso que leram, não nos deixaram viver. Sem tempo e sem energia, o nosso crescimento deu-se sempre alienados do nosso íntimo, apenas ensinados a ir de encontro ao estímulo, gerando jovens adultos que não se conhecem. Criaram meros robôs, cada vez mais eficazes a concretizar os objectivos que outros lhes atribuem. Agora eu pergunto: não nos deviam ter ensinado a estabelecer os nossos próprios objectivos, as nossas próprias metas? Roubados de espaço e energia para estar connosco próprios, nunca nos chegamos a conhecer. E se nunca nos chegamos a conhecer, nunca poderíamos ser capazes de definir o que gostamos de fazer e onde queremos chegar. Queixam-se agora do que somos, esta geração “à rasca” sem ambições e sem dinamismo? Foram vocês que nos fizeram! Parece delírio mas é real. Estamos a (sobre)viver continuamente no modo “Fight or Flight”, que em termos biológicos é o modo de sobrevivência do organismo quando sente o perigo. Se achar que o consegue anular, fica e luta; se achar que não, foge. E assim andamos, à procura da next big thing, daquilo que nos vai conseguir fazer sentir verdadeiramente felizes (desta é que é de vez!), sem saber que em vez da felicidade apenas procuramos a euforia. A ressaca é o pior e o que verdadeiramente me assusta ver, tanto na minha geração de jovens adultos como nos nossos jovens adolescentes (sim, porque pior do que ser viciados, é contribuir para a perpetuação desse vício, e o que vejo é que instilamos este processo cada vez mais precocemente nos dias de hoje): a completa ausência de ambições e de paixões, a inércia a que nos abandonamos sobre os mais diversos meios, a nulidade duma vida que nem sequer se pensa em sociedade, o desgaste psicológico que nos vai lavrando os corpos extenuados. Somos assim uma geração de gente que apenas reage, consoante as ferramentas de cada um, em vez de ser pessoas de carne e o osso, com capacidade de reacção sim, mas também de reflexão. Somos uma geração que não consegue lidar com a ausência de estímulo e que para a evitar entra numa dinâmica de conflito constante (sejam eles discussões amorosas fabricadas, ainda que num plano inconsciente, atritos no emprego ou sobrecargas desmesuradas de trabalho), à procura da próxima dose de euforia que a venha mitigar. Somos uma geração solitária, de gente que não se consegue relacionar de forma natural, sem ajuda de um sem número de devices. Somos uma geração doente, a padecer de esgotamentos e depressões uns em cima dos outros, invadidos duma ansiedade que não conseguimos circunscrever e muito menos extrair de nós. Somos uma geração de gente insegura, que sem tempo para se continuamente descobrir, perde a noção de quem é, e consequentemente do seu próprio valor. É isto que somos: não somos geração nenhuma, somos o vazio. Somos junkies. 06-02-16 artigo publicado na edição online da REVISTA RUA, a 21 Março 2019. https://www.revistarua.pt/adrenaline-junkies-a-droga-da-minha-geracao/
Adopção Homossexual: a fractura exposta da sociedade portuguesa?
O Marcelo Rebelo de Sousa ganhou as eleições presidenciais no passado Domingo. No dia seguinte, o Presidente da República ainda em funções decidiu vetar a moção com maioria parlamentar que visa alterar a lei para que passe a permitir a adopção de crianças por casais homossexuais. Antes de tudo isto, com a tomada de posse deste novo governo PS, foi aprovada no Parlamento uma moção para permitir a co-adopção de crianças por casais homossexuais no nosso Portugal, num esforço para proteger as crianças já com um vínculo, legal ou biológico, a um dos membros do casal. Foi uma medida polémica na sociedade portuguesa, mas que não impediu que algum tempo depois fosse votada uma nova moção destinada a permitir a adopção plena por casais homossexuais. Tudo isto são factos, não opiniões. Juntámo-nos assim a uma lista de 24 países no Mundo que já entenderam que esta é uma questão de direitos humanos e nada mais, e demos assim um grande passo em frente. No entanto, todos concordarão que esta não é uma questão consensual, e são muitas as vozes que se insurgem contra tal aberração anti-natura.
Com o veto do actual Presidente da República, as vozes que teimam em se insurgir contra este avanço na matéria de direitos humanos, irromperam num clamor ainda mais alto, aplaudindo a posição de Cavaco Silva. Mesmo tendo em conta que pouco ou nada fará para travar a medida, acabando por apenas atrasar a sua concretização. Pessoalmente, considero que para se tomarem decisões acertadas é sempre necessária uma discussão aprofundada e quase cansativa da temática debaixo de fogo. Assim, mesmo assumindo-me frontalmente a favor de ambas as moções, entendo serem necessários alguns dos argumentos contra que têm vindo a ser levantados para promover uma reflexão profunda e um debate realista duma questão que se apelida de fracturante. Contra isso, absolutamente nada. O que me irrita é unicamente a vil tentativa de desinformação e de confusão da opinião pública. Sinto-me afrontada na minha inteligência quando me tentam provar a legitimidade de ser contra esta medida, usando argumentos que não constituem mais do que falácias, logros e tentativas pobres de manipulação. Vamos por pontos:
1 - Co-adopção não é adopção. Quando falamos de co-adopção homossexual estamos a falar de um casal homossexual, é certo, mas estamos a falar duma criança que ou se constitui prole biológica de um dos elementos desse casal ou foi já adoptada por um desses elementos (não duma criança num lar que é adoptada em conjunto por ambos). Antes desta medida, mesmo tendo a criança crescido com ambos, o que para todos os efeitos significa que foi criada por ambos, na eventualidade da morte do seu progenitor legal, ficaria órfã, sendo provavelmente institucionalizada. Vamos trocar por miúdos: um homem com um filho (biológico ou não), um homem gay (eu sei, podia ter escolhido um casal de lésbicas que tornaria logo isto menos penoso, mas eu sou daquelas pessoas que gosta de torcer), um homem que por acaso tem como parceiro de vida outro homem, cria esta criança durante 10 anos, em conjunto com o seu parceiro. Num dia qualquer, tem um fatídico acidente e morre; esta criança não poderia, legalmente, estar também à guarda do seu padrasto, um homem que para todos os efeitos foi também ele responsável pela sua educação. Ou seja, por uma lacuna legal (embora motivada por um sem número de factores), o destino mais provável desta criança seria a institucionalização, com um pai que a ama impossibilitado de ficar com a sua custódia. Será que com este exemplo tão extremo me fiz entender? Nesse sentido, sim, esta lei visa proteger e salvaguardar os direitos das crianças, crianças que não precisam de ficar órfãs, que não precisam de ser institucionalizadas. Agora vamos discutir se um casal gay pode ou deve adoptar uma criança! Eu sei que a diferença é pequena, mas existe e assim, orientar a discussão tentando mesclar as duas não só é demagógico, como é FACTUALMENTE ERRADO. Aqui, a questão centra-se única e exclusivamente nos direitos humanos: talvez para algumas pessoas, as mesmas que consideram a comunidade LGBT como uma minoria radical, fosse preferível não considerar humanas estas pessoas, e arrumava-se já assim a questão. O problema é que o são, e como tal, merecem, É-LHES DEVIDO, os mesmos direitos que a mim. Há objecções ideológicas? Reconheço que sim, prossigamos.
2 – Uma criança precisa de afecto e de referências. Ouço recorrentemente este argumento: uma criança precisa de uma mãe e de um pai para ser equilibrada, para se tornar um adulto saudável. Logo, permitir que dois homens adoptem uma criança é um atentado não só à ordem natural das coisas como um acto de deliberado malefício àquela criança. Não meus senhores, uma criança precisa de afectos, venham eles de quem quer que seja, e de referências morais e comportamentais tanto femininas como masculinas. Se esse argumento fosse de facto real, para além de invalidar todas as investigações desenvolvidas recentemente que apontam que uma criança criada por um casal homossexual não revela diferenças na sua formação pessoal em relação às restantes, traduziria uma grande injustiça social, ao afirmar que crianças provenientes de famílias monoparentais (quer devido à morte de um dos pais, quer devido à ausência intencionada de um deles) seriam invariavelmente crianças menos equilibradas. Quantas e quantas são as crianças que acabam por ser retiradas da guarda dos pais (do pai e da mãe, que estou a falar de casais heterossexuais – só para que não haja mal-entendidos) precisamente por não terem as condições mínimas que se constituem direito inegável ao crescimento de qualquer uma delas? Seria legítimo usar essas estatísticas para argumentar que famílias heterossexuais não conseguem providenciar condições para educar uma criança? Obviamente que não, e este exemplo serve apenas para ilustrar que a excepção não deve nem pode ser usada para justificar a regra. Do mesmo modo, o facto da família da criança ser constituída por dois indivíduos do mesmo sexo, não invalida que a mesma não faça por rodear a dita criança de muitas e importantes referências do sexo oposto. Sejamos justos e francos: as crianças precisam de afecto, e isso tanto lhes dá um pai e uma mãe, como dois pais, como duas mães, como só um pai ou só uma mãe, como uma avó ou um tio. O que determina a capacidade de criar uma criança não é, nem nunca foi, nem pode ser, a orientação sexual dos pais: é única e somente as suas formações pessoais, que é como quem diz, a pessoa que são.
3 – A religião de cada um é uma escolha; a sexualidade não. Afigura-se-me perfeitamente execrável que, num estado supostamente laico como o nosso, ainda se utilizem argumentos religiosos para argumentar seja o que for. Que haja gente que se recuse a entender que a homossexualidade não é uma escolha (sem que se constitua por isso uma doença, ou um comportamento desviante, como muitos ainda gostam de sugerir), que seja possível que uma pessoa se sinta colocada no género errado desde criança ou que até nem se queira compartimentar em nenhum deles (sem que seja por isso classificada como uma aberração), não me espanta: todos somos livres de acreditar naquilo que se nos afigurar mais credível. A mim custa-me acreditar, por exemplo, numa imaculada concepção, em que uma criança é concebida através da visita de um anjo num sonho; parece-me bem mais provável um cenário alternativo em que duas pessoas se descontrolam um bocadinho, fazem umas patifarias, e depois se arrependem e tentam dar a volta ao texto. (Para ser honesta, o pormenor que me levantou algumas dúvidas foi mesmo a lança perfurante do anjo Gabriel, mas lá está, entendo que esta minha versão talvez não fosse muito evangelizadora.) Não dispersando, quero com isto dizer que cada um é livre de acreditar no que quiser. O que não se pode é querer contradizer factos cientificamente comprovados com teorias religiosas: não podem nunca argumentar que aquele casal homossexual vizinho são uma aberração da natureza proibida por Deus, porque teimam em não abandonar o seu comportamento pecaminoso, porque insistem em dizer que não escolhem quem amam e porque nos afrontam dizendo que por isso mesmo devem ter acesso aos mesmos direitos legais (como o direito à adopção). E certamente, não poderão dizê-lo num espaço de discussão como o Parlamento, num estado em que a religião é tudo menos linha orientadora. Convém vincar: direitos legais é uma coisa, direito à redenção divina é outra. Meus senhores, isto é Portugal, não os E.U.A: aqui, um deputado, um ministro ou qualquer outro representante político, tem de ser e estar isento, independentemente das suas próprias convicções religiosas. Por tudo isto, façam o obséquio de respeitar aquilo que a ciência já nos fez o favor de explicar e utilizem argumentos que assentem nessas premissas. Serão muito mais credíveis, garanto.
Posto isto, que argumentos aceito eu então, esta amostra de ser ateu, prepotente e irascível que sou? Aceito dois: irritou-me profundamente sentir algum oportunismo político no timing deste debate, na medida em que há questões que me parecem ser também elas urgentes. Assim, usar este momento (frágil, como todos certamente reconhecemos) para fazer aprovar uma medida tão polémica, pareceu-me irreflectido, quase arrogante e de certeza desnecessário. Para além de que, na tentativa de chegar ao diálogo possível, as forças políticas da esquerda entraram na conversa sem a clareza necessária para a discussão, na medida em que se concentraram mais em provar os benefícios desta medida para as crianças, do que em expôr estas falácias e em separar objectivamente os dois temas. Não engaram ninguém: isto é, numa primeira instância, uma questão de direitos humanos, mais concretamente uma tentativa de tornar Portugal mais justo, deixando-se de aceitar que uma minoria possa ter acesso limitado ou vetado a direitos inquestionáveis da maioria. Eu acredito que as crianças também ganham muito, principalmente no que está relacionado com a co-adopção, mas o enfoque da questão não é nem nunca foi esse, e por isso mesmo, a esquerda pecou ao querer “tapar o Sol com a peneira”. Por outro lado, aceito também o argumento do provável desajuste social que as crianças provenientes de famílias homossexuais irão sentir: é verdade sim, não estamos preparados para isto. Então, o que faz mais sentido? Continuar hibernados à espera dum dia em que o estejamos (tal e qual como continuamos à espera dum D. Sebastião que volte do nevoeiro para nos resgatar do marasmo e da mediocridade) ou agir e procurar soluções à medida que surgem os problemas? Eu sei que se calhar não será muito português e por isso talvez não muito patriótico, mas eu inclino-me mais para a segunda opção. Sou uma gaja mais de acção; sei que certamente serei repudiada, certamente menosprezada como uma desorientada sempre do contra, talvez por um dos muitos fundamentalistas e ignorantes que ainda proliferam, mas que fazer? Deus fez-me assim.
30-01-16
Vamos jogar à cabra cega?
Amanhã é dia de ir votar. E neste Portugal dos Pequenitos, ir votar vai ser tal e qual como jogar à cabra cega: é tentar apanhar um e adivinhar quem ele é. Sim, adivinhar, porque somos continuamente vendados para ver apenas aquilo que alguém quer que vejamos, porque esta campanha foi recheada de tentativas (bem-sucedidas, infelizmente) para mascarar a verdadeira natureza de alguns candidatos. Desenganem-se: não vou estar aqui a fazer um apelo ao voto. Aquela larga fatia abstencionista da população não recolhe nem a minha simpatia nem o meu interesse. Não votar é uma escolha consciente que se faz (por motivos mais ou menos válidos), e por norma não gosto de assumir que as pessoas com opiniões divergentes da minha são inconscientes e ignorantes ao ponto de precisarem de ser incentivadas a votar. A mim o que me preocupa é em quem vão votar os outros todos, inclusive aqueles a que não consigo reconhecer capacidade intelectual, por muito que tente (e olhem que há alturas em que realmente me esforço), para conseguirem ir lá colocar a cruzinha de olhos bem abertos. Que é como quem diz: anda meio mundo cego, vendo aquilo que é mais conveniente ver, quer para uma elite (nada bem) disfarçada, quer para si próprios, para que consigam perpetuar o mundo fantasioso em que vivem. É precisamente esse o tema que aqui quero tratar: a cegueira colectiva que parece proliferar neste país e estas “jogatanas políticas” que mais se assemelham a um autêntico jogo da cabra cega. Já muitos o disseram: no nosso tempo as guerras já não se fazem com armamento; as guerras hoje são financeiras, e o que vemos no nosso país (e assim como noutros) trata-se de uma invasão (pouco) camuflada. O que me parece inaceitável não é que a nossa classe política seja conivente com isto. Tendo em conta aquilo que nitidamente lucram com essa postura e também tendo em conta o carácter que historicamente têm vindo a demonstrar, seria de prever uma linha de acção neste sentido. O que verdadeiramente me choca também não é a passividade com que encaramos este facto, permanecendo inertes no nosso sofá a assistir ao Telejornal, em vez de criarmos uma ameaça real à continuidade da existência de tais pessoas. Não, o que me incomoda sobremaneira é ser confrontada com a estupidez que tomou conta do povo português, na sua larga maioria, uma cegueira altamente contagiosa que afecta de forma acentuada uma larga fatia da nossa população. Este discurso, eficazmente difundido em todos os diferentes veículos mediáticos não só nacionais, mas também mundiais, conseguiu manipular a opinião da generalidade das pessoas a ponto de desenvolverem uma estirpe do Síndrome de Estocolmo que futuramente se irá estudar, não tenho dúvidas, na medida em que conseguem não só aceitar as decisões do seu opressor, como fundamentá-las, apoiá-las, justificá-las. Enfim, conseguem ACREDITAR que são necessárias. Conseguem ACREDITAR que somos de facto uma cambada de meliantes a tentar através de todo e qualquer subterfúgio fugir de pagar as nossas dívidas. Sem que ninguém pareça querer encarar a clara mentira que estas representam.
Falo de uma cegueira colectiva que afecta milhões de pessoas. Pessoas que acreditam que uma ideologia política que vá contra a actualmente difundida (este neo-liberalismo redentor, capaz de nos vir resgatar dos excessos do socialismo) é um logro, é um ataque à própria sociedade ou à própria democracia, é um insulto à inteligência das pessoas. Não me refiro a nenhuma sondagem, até porque esta seria uma sondagem que não interessava a ninguém fazer. Refiro-me ao que é possível observar lendo as caixas de comentário das notícias que saem todos os dias na comunicação social, por exemplo. Aí, eu vejo uma cegueira que torna as pessoas abertas à intolerância, permeáveis à manipulação, abandonadas à inércia, e incitadas ao fascismo. Partindo desta premissa e do que temos observado nos últimos meses cá pelo nosso Portugal, é possível concluir que efectivamente vivemos num regime fascista, onde aliás prevalece a censura como há 40 ou 50 anos atrás, e desta vez está tão bem montado, que a maioria dos portugueses, claramente sofrendo desta tal cegueira colectiva, vive tranquila e alegremente as suas vidinhas pacatas sem se saber censurada. Somos passarinhos enjaulados em gaiolas douradas, e gostamos. Há tantos exemplos para sustentar esta tese que se torna impossível enumerá-los (e incrivelmente maçador). Por outro lado, dificilmente se conseguirá dizer a um cego para ver como é negro o carvão. Mas mesmo assim, como sou uma gaja casmurra e tenaz, quero tentar:
Tivemos um Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares com um curso superior comprovadamente forjado, conquistado com recurso a favores (em teoria, com recurso a equivalências – 32, para ser mais exacta);
Tivemos um Ministro da Educação que decidiu, de forma perfeitamente arbitrária, pretensiosa e grotescamente prepotente que se conseguiria tornar as crianças mais inteligentes e competitiva criando mais exames, aumentando significativamente as metas de cada disciplina e aumentando a carga lectiva de Matemática e Português (como se fossem disciplinas de primeira e as restantes de segunda ou de terceira), mesmo que todas as investigações das últimas décadas isso contradigam categoricamente;
Tivemos um Primeiro Ministro que após 4 anos de uma luta cerrada à evasão fiscal, se descobriu ter uma dívida de milhares à Segurança Social, dívida que NUNCA chegou a pagar na totalidade, usando como desculpa o seu desconhecimento de tal facto;
Tivemos um ex-Primeiro Ministro preso preventivamente 9 meses, sem que NENHUMA acusação tivesse sido feita pelo Ministério Público, interrompendo precisamente o momento em que se encontrava como comentador político no serviço público de comunicação social (dos poucos de esquerda, certamente também estranha coincidência);
Tivemos um Ministro do Ambiente que achou ser necessário privatizar a água: enquanto dizia que nem sequer o equacionava, ao pretender apenas uma reestruturação do sector, planeava entregar a sua concessão a 5 grandes empresas (privadas), e se depois se acabassem por aglomerar apenas numa, seria uma consequência natural dessa reestruturação, nunca uma privatização;
Temos uma comunicação social em que prevalecem ASSUMIDAMENTE os comentários políticos de direita;
Tivemos um Ministro dos Negócios Estrangeiros que estando claramente implicado num processo criminal de desvio de fundos públicos (o chamado caso dos submarinos), fez desaparecer todos os documentos que podiam constituir prova no processo.
Tivemos um Presidente da República que foi comprovadamente desonesto (é, diz que até houve papéis a dizer isso e tudo) em muitas “negociatas” (falemos do BES e da casa da Coelha, meramente para ilustrar);
Tivemos um Presidente da República que em muitos e variados momentos escolheu favorecer o seu partido, mesmo quando a Constituição o impedia terminantemente de o fazer;
Tivemos uma campanha eleitoral para as eleições presidenciais a decorrer, em que um dos candidatos se encontra em situação de claro favorecimento, uma vez há mais de 15 anos que se assume como uma das mais importantes vozes de comentário político nacional, moldando naturalmente o pensamento de todo esse sector da comunicação social;
Já é mais óbvio a que me refiro quando falo desta cegueira colectiva? Não? Vamos fazer um desenho (olhem lá para mim a usar as mesmas técnicas de manipulação que os donos disto tudo, ao infantilizar o meu discurso): mesmo perante todas estas evidências, estes escroques foram votados para voltar ao poder por uma significativa fatia da população, e embora não conseguindo a maioria dos votos, conseguiram vencer as eleições. E porque esta fatia da população também conseguiu sair dos seus sofás para se revoltar transtornada contra a possibilidade duma coligação histórica entre os 3 principais partidos da esquerda, e contra a possibilidade dessa coligação se constituir governo. Mesmo que tenha sido precisamente o que fizeram estas pessoas depois dos resultados eleitorais das anteriores eleições legislativas; mesmo que não haja qualquer impedimento legal ou constitucional em fazê-lo. E claro, mesmo que não haja certamente qualquer impedimento ético ou moral, e mesmo que tal se tenha constituído como uma emergência social. Daqui se percebe o óbvio: os portugueses ou estão cegos ou são burros. Não quero acreditar que intrinsecamente burros, na medida em que nos mostramos claramente susceptíveis à manipulação de opinião, evidenciando por isso uma volatilidade de pensamentos notável. Mas seremos certamente burros, cegos, populistas, incultos, chico-espertos e mesquinhos, se amanhã mais uma vez perpetuarmos estes comportamentos.
Atenção, não se confunda isto com um discordar de políticas de direita, pois não é disso que se trata. Apesar de não me rever nas ideologias políticas de direita, reconheço-lhes legitimidade e utilidade, principalmente naquilo que deveria ser o debate necessário e essencial para se governar um país. Isto é pegar nessas ideologias e radicalizá-las a ponto de se tornarem quase irreconhecíveis, é colocar os interesses financeiros acima dos direitos humanos, uma decisão calculista que além de atroz se pode descrever como incrivelmente estúpida. Parece-me que todos estes radicais (sim, porque quando olhamos para as pessoas que compunham a coligação CDS/PSD até agora, eu vejo radicalistas à direita, desculpem-me que sou meia míope) se esqueceram de algo muito simples: sem pessoas, não há capital. Ponto. Por isso, amanhã votem em quem quiserem. Até podem votar no Prof. Marcelo, nada contra, mas votem nele apenas se souberem em quem estão a votar (qual dos Marcelos?), no que defende (conhecem-lhe alguma ideia política concreta?) e no que representa (é completamente apartidário, mas também é em simultâneo o candidato do regime, será possível?). Em suma, votar não é expressar simpatias: é decidir a quem relegamos a nossa vida. E eu não deposito a minha vida nas mãos de quem não (re)conheço, cujas ideias e ideais desconheço e em quem não sei o que representa. Eu não vou só lá colocar a cruz: eu vou lá para acabar com o jogo da cabra cega.
23-01-16
A vida através da lente do telemóvel
Não sei precisar no tempo quando foi que fotografar tudo o que fazemos se tornou “normal”. Sei que a minha infância/adolescência não foi povoada de selfies, nem de fotos da ementa de cada dia. E eu só tenho 25 anos.
Hoje para qualquer criança de 10 anos é normal ter um perfil electrónico, para qualquer adolescente de 16 anos é normal tirar e publicar (!) fotos de si próprio (selfies, que coisa tão interessante que até é importada e tudo) em frente a espelhos de elevador ou de casas-de-banho públicas, e para qualquer jovem adulto é normal partilhar um álbum inteiro daquelas férias fantásticas no Sul de Espanha ou a foto do prato daquele restaurante fantástico que abriu na baixa do Porto. A minha pergunta é simples: a que propósito se assume importante fotografar cada acontecimento corriqueiro da nossa existência, talvez revestindo-a de uma importância que ela não possui, e como podemos ser tão alarves que fazemos questão de esfregar essa nossa parvoíce na cara dos outros?! Se nos debruçarmos sobre isto com vontade, mesmo à séria, facilmente conseguimos chegar à conclusão de que vivemos imersos no ridículo duma humanidade que só consegue fruir da beleza das coisas se for através duma lente. Todos nos escandalizamos quando lemos relatos de pessoas que no meio de um incêndio, ficam para trás para o fotografar e acabam por ficar presas; é tudo um escândalo, algo impensável. Mas não parece chocar ninguém quando diariamente vemos a vida íntima de cada um esparramada no feed do Facebook.
É quase como se as coisas/acontecimentos não fossem reais se não se puderem comprovar com uma foto. Os nossos olhos deixam de apreciar a beleza pela beleza e deixamos de estimular a nossa memória e imaginação, porque apenas procuramos momentos para capturar numa lente e encerrar num universo electrónico que NÃO É REAL. Pior do que (vi)ver a vida através de uma lente é necessitar duma validação virtual para que esta seja de facto consumada. Se for a um restaurante japonês incrível e não publicar uma foto do prato fantástico que pedi, esperando obter com isso umas dezenas de likes validando a minha óptima escolha e o meu requintado estilo de vida, como me poderei gabar disso mesmo, na intimidade do meu próprio egocentrismo? Assim, todo este universo virtual actua com ferramenta de validação externa e consolo narcisista para o ego. Se acham que não, pensem comigo: fotografar a comida que vem para a mesa (ainda mais se vier com um aspecto verdadeiramente suculento) há 15 anos seria considerado uma tolice e uma estupidez! E é isso mesmo que representa, uma grandessíssima alarvidade que ainda por cima deturpa a forma como interagimos socialmente! É das coisas mais ridículas que encontro no meu quotidiano.
Falemos também disso: numa sociedade onde as redes sociais são presença omnisciente (sim, porque não se iludam, aquelas sugestões que a web nos consegue fazer não são produto do acaso) no nosso quotidiano, em que as telecomunicações permitem um contacto sempre constante e sob os mais variados feitios, é muito fácil deturpar os modelos seculares de interação social. Aliás, se não se importarem de ser rotulados como extremistas ou como maluquinhos da conspiração, poderão constatar que isso já é o que acontece. Antes da difusão dos telemóveis era impensável que as pessoas estivessem sempre contactáveis; trocavam-se telefonemas a horas bem específicas, sempre da linha de telefone fixo, o que por sua vez implicava saber à partida que o interlocutor estava em casa quando falava connosco. Agora, trocam-se chamadas, SMS, MMS, videochamadas, tweets, imessages, e sei lá bem mais o quê. A qualquer hora, em qualquer momento e em qualquer lugar. Não é por acaso que se tem assistido a um aumentos dos comportamentos agressivos (principalmente aquelas agressões que nunca o chegam a ser em termos criminais, pois são só psicológicas) dentro das relações amorosas. Não é por acaso que as pessoas evidenciam uma maior necessidade de controlo, do outro, de tudo e todos. Ao invés de nos tornar mais rápidos, tornou-nos mais imediatos, que não é bem a mesma coisa. Quero eu dizer que presentemente procuramos sempre aquilo que está “mais à mão”, o instantâneo, o sem esforço. Até nas relações: o sexo dissociou-se completamente do amor ou do afecto (afinal, não é normal mandar fotos “provocantes” a seja quem for que as peça? Então e o sexting – para quem não sabe, ter sexo através da troca de mensagens – não é a mesma coisa? Então e as megas declarações de amor eterno para todo o mundo ver, não são bonitas?), ou quando se sai com os amigos consegue-se manter em paralelo conversas virtuais com quem não está ali (mas se me mandam mensagens, vou fazer o quê, ficar sem responder? Isso seria profundamente indelicado). Parece quase mesquinho, mas se nos dedicarmos a observar as pessoas sem rosto e sem nome que por nós se vão cruzando, percebemos que estamos hoje mais sós do que nunca. Pior, se analisarmos o nosso próprio comportamento, veremos que já estamos todos “contaminados”; e sim, é mesmo de um vírus que se trata.
Atenção que eu, apesar de gostar assim-assim de ser o objecto de fotografias, sou uma utilizadora fiel das redes sociais, e reconheço-lhes muito mérito quer na divulgação profissional, quer no estreitamento de laços afectivos (principalmente entre quem está separado pelas mais variadas distâncias)! Sou também dependente incurável do telemóvel, e fico instantaneamente em pânico se vejo a bateria a desaparecer. Não sou hipócrita. No entanto, sê-lo e ter em simultâneo esta noção do ridículo ajuda-me a não perder de vista aquilo que é realmente importante. Por esse motivo, custa-me mesmo a digerir a necessidade da maioria das pessoas em tirar pelo menos um foto a si próprio por dia e em publicá-la para o mundo ver. Pior, às vezes fazem-no aos filhos, completamente inconscientes dos perigos reais que isso representa para a sua segurança. E a noção do ridículo, o bom-senso, a sensibilidade, onde é que ficam? Não raras vezes, e principalmente em contexto social (feminino, perdoem-me mas é verdade), podemos ser surpreendidos na rua por um grupinho de pessoas que pára num sítio aparentemente aleatório e desata numa prolífica sessão de fotos, com direitos a bocas mais delineadas, ancas meneadas e olhares ensaiados. Não sei se concordam, mas sempre que me cruzo com um cenário destes a primeira impressão é mesmo o desconforto provocado pela vergonha alheia. O que eu leio num perfil electrónico que publique uma foto de si próprio por dia, é um carácter profundamente narcisista, egocêntrico e imaturo. E talvez uma vida profundamente aborrecida e desocupada, para que o único entretenimento útil seja ver-se a si mesmo.
No fundo é engraçado, isto dos avanços tecnológicos e do mundo novo das redes sociais: faz-nos sentir a todos como umas vedetas (afinal se as figuras públicas podem tirar umas fotos da sua ementa ao jantar, em que é que eu sou diferente?!), expondo o nosso quotidiano maioritariamente medíocre, mas em vez de promover uma real introspecção, um olhar-se a si mesmo pelo íntimo (necessidade urgente do mundo actual!), promove apenas um foco no que temos de mais superficial, acentuando os julgamentos alheios e o preconceito. Curioso, não?
16-01-16
Oh estrela, queres cometa?
Na última semana de 2015 e ainda nos primeiros dias de 2016, houve um assunto bastante discutido. Falo concretamente da polémica que se tem criado à volta da chamada “lei do piropo”, que por sinal já é uma realidade desde Setembro do ano que agora findou, embora pareça que só agora é que tem dado que falar. A mim, avançar com medidas concretas na eliminação contra a violência de género parece-me um bom princípio, e toda a polémica causada parece-me, além de obviamente desnecessária, completamente aberrante.
As vozes que se insurgem contra esta medida (e olhem que são muitas, a avaliar pelo indicador fenomenal que é o meu feed de notícias do Facebook) protestam, num coro indignado (juro que às vezes gostava de ver essa indignação manifestada contra aquelas coisas que estão realmente mal feitas) sobre várias formas e feitios (alguns bastante originais, reconheço). Creio que é sempre mais fácil demonstrar a veracidade e justiça duma opinião ou duma acção quando existe contra elas uma forte oposição: assim sempre nos é dada uma possibilidade de usar o raciocínio lógico-dedutivo que tanto nos trabalharam na escola. A base argumentativa desta opinião geral assenta em quatro pilares que uma vez identificados, são facilmente refutáveis. Sim, e quero refutá-los porque infelizmente ainda há quem, munido das ferramentas certas, contribua para instilar a confusão e um consequente descrédito, desprezo ou até ódio.
1. O argumento mais imediato é o de que esta alteração à lei não se assume prioritária no enquadramento socioeconómico do nosso país. Não há nada de mais premente a fazer pela sociedade portuguesa, afinal? Tantos desempregados, velhos e novos, uma geração hipotecada na emigração, o flagelo da pobreza extrema... e estes gajos querem criminalizar o piropo? Minha gente, mas será que o português só saberá de facto dizer mal?! Pergunto isto porque sempre (SEMPRE!) que este governo tomou alguma medida, há sempre um chorrilho de críticas azedas atestando que só se preocupam com coisas fúteis, desviando atenção dos problemas que realmente importam. Não podemos lamentar-nos de continuar estagnados e depois criticar quando há quem faça por sair desse marasmo! Damos aqui prova de ser umas bestas incoerentes, eufemisticamente falando. Não me vou aqui dedicar a explicar-vos o bem que as diferentes medidas já tomadas vos vai trazer (pelo menos não nesta crónica), porque creio não ser necessário, uma vez que em primeiro lugar é relativamente fácil de perceber que um avanço é sempre um avanço, mesmo que em vez de megalómano seja um avanço mais humilde, e em segundo lugar que contribuir para a igualdade de género e para erradicar comportamentos de violência sexista, NÃO é assunto fútil. É uma emergência social. Ou isso, ou vão ficar parecidos com os chineses e passar a querer ter só filhos meninos (ainda que por motivos diferentes).
2. Por outro lado, convém esclarecer que esta alteração à lei é a propósito de assédio sexual; não é sobre piropos na verdadeira acepção da palavra (por isso parem lá de se queixar que já não vão poder mandar um piropo à vossa namorada). A expressão “lei do piropo” foi criada pelos media e pelas redes sociais: podemos questionar-nos se por desleixo e falta de seriedade, se com clara intenção de contribuir para a instabilidade social (outra discussão em que não pretendo entrar, para já). Os artigos do Código penal revistos (170º e 171º, para quem quiser consultar) dizem o seguinte: “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contato de natureza sexual, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (...)”. Quando estes actos forem cometidos sobre menores de 14 anos, aí sim a pena poderá ir até ao máximo de 3 anos (é, convém não confiar nos títulos sensacionalistas do Correio da Manhã e ler mesmo as notícias até ao fim). Os ditos que qualquer miúda de 13 anos (ou graúda de 35) ouve ao passar por uma obra, um tasco ou outros locais estratégicos não são piropos: são tiradas ordinárias. O erro aqui recai naquilo que a sociedade considera agora ser um piropo; numa sociedade em que a interação sexual é muito mais imediata, rápida e despudorada, passamos a acreditar que ouvir “vestia-te um pijaminha de cuspo!” dum completo estranho se trata de um piropo. Não é, piropo é ouvir o meu namorado dizer isso, sabem porquê? Porque ele pode, e um estranho não pode porque não me conhece de lado nenhum e arrisca-se assim a levar uma lambada que o tomba.
3. Se analisarmos a fundo o suficiente, percebemos que a maioria da indignação é sentida pelo sexo masculino; porquê? Porque estará um homem irritado por já não poder dizer a uma estranha que gostava de lhe assentar uma pinocada bem dada? Simples: porque a nossa sociedade é indelevelmente machista, e ainda se perpetua a ideia de que um homem tem o direito de opinar sobre o aspecto físico duma mulher. A génese destes comentários é precisamente essa, e não me venham cá com coisas porque não conheço nenhum homem que se tenha queixado do inverso. Há uma ideia ainda latente de que não há problema num homem comentar abertamente uma mulher, e daí se lê que estaria nesse direito. O problema é que não está: ninguém tem o direito de manifestar este tipo de comentários, independentemente dela estar ou não “a pedi-las”! Não me importa se ela vem de mini-saia a exibir umas pernas bem torneadas, ou de leggings bem justinhas a realçar o rabo tonificado e voluptuoso, ou de decote provocante num peito farto. Cada um(a) veste-se como quer, anda como quer, pinta-se como quer, e tem o direito de não ser julgado(a) em praça pública por isso (em privado, pensem e digam lá o que quiserem, que isto ainda é uma democracia). Sabem porquê? Por dois motivos: primeiro porque é este argumento que iliba em tribunal muitos ofensores sexuais e falha com sei lá eu quantas vítimas (afinal não houve há pouco tempo um que foi ilibado porque “caiu acidentalmente” em cima da vítima, acabando por a penetrar?!?!) e segundo, porque é assim que se abre uma caixa da Pandora que permite situações de perseguição ou coação. Não se iludam: os “piropos” são a outra face da moeda que torna real a possibilidade da vossa filha de 15 anos ser assediada por um velho de 70 com propostas sexuais explícitas, babando-se enquanto a segue na rua. A mim, por exemplo, já me aconteceu ir na rua com uma amiga, seguidas por um “senhor” sensivelmente dessa idade e que a dada altura nos encurralou e nos ofereceu 50€. Para concretamente o quê, nunca o vou saber, porque essa minha amiga foi excelentemente educada para saber reagir a isto, e com duas frases proferidas com a agressividade necessária, soube escorraçá-lo dali para fora. Mas podia não ser um velho de 70 anos, podiam ser 4 homens de 30 que não se deixassem intimidar tão facilmente. É para eliminar este tipo de violência que vos digo, homens: só tem o direito de falar sobre o meu corpo (ou fazer-lhe o que quer que seja) quem eu quiser e quem eu deixar.
4. O último argumento é o que pessoalmente me enoja mais: são as mulheres que se insurgem, atacando aquelas que são ou foram vítimas, dizendo que “mulher de bem não tem ouvidos”. Que é como quem diz: se não queres, não provoques. Cabeça baixa, olhos no chão, não respondas, continua a andar. Errado! Devíamos estar a educar as nossas meninas exactamente na direcção oposta: não sou eu que tenho uma postura errada, é quem profere esse tipo de impropérios! E como a todos os que procedem mal, deve-lhes ser dada a punição adequada! É uma coisa muito simples, mas que faz a diferença: se alguém nos faz alguma proposta de teor sexual indesejada, há que saber responder. Seja a dizer um “piropo”, seja num apalpanço, seja numa espera à porta de casa. Para mim, aqui vale tudo: há que descer à baixeza, ser malcriada se for preciso, ser agressiva até. Ninguém me toca se eu não consentir, ninguém opina sobre o meu corpo; os que o tentarem terão a resposta que for necessária, nunca o meu encolher de ombros, o baixar os olhos ao chão, o andar de headphones nos ouvidos... nunca a minha inércia ou conformismo. E uma mulher que perpetue esta ideia está a fazer tanto mal às mulheres como os homens que as maltratam. Ponto.
Não tenho filhos, e sei que tendencialmente a maternidade nos rouba de todas as certezas. Mas há uma que guardo comigo e que tudo farei para que não se perca: à minha filha ensinarei que por mais bem-educada que seja, por mais gentil ou mais bondosa, quando ouvir um “comia-te essa cona toda!” está autorizada para ir ter com o gajo, espetar-lhe um murro na tromba ou um pontapé no “abono de família” e responder: “no caralho é que comias.”
08-01-16
Em 2016, façam por amar!
Então parece que já começou um novo ano. Todo o mundo renova os anseios por um ano melhor, construindo uma realidade também ela melhor (seja num prisma mais individualista, seja noutro já mais consciencioso). Sei que ceder a essa vontade se constitui como um clichê, mas de alguma forma (talvez no meio deste estado inebriado em que me encontro, propiciado pelas festividades) este ano parece-me inevitável, e quase bonito. Tenho um e apenas um desejo para 2016: gostava que todos pudessem sentir, nem que seja apenas num único dia na vida, o que é ser-se genuinamente amado. É, continuam no Pimenta na Língua e não num concurso da Miss Universo, mas leram correctamente: desejo Amor.
Gostava que pudessem encontrar um amor que una dois colos como casa um do outro, onde duas mãos enlaçadas sejam o conforto e ternura que antecede a volúpia. Um amor onde um beijo seja um tesouro que se oferece, como se com ele se oferecesse também a capacidade de nos despirmos de todas as muralhas que nos envolvem e a capacidade de entregar o mais íntimo do que somos sem vergonhas nem pudores. Um amor que veja beleza no outro até no mundano mais ordinário, naquilo que todos os demais só conseguem ver fealdade: que dispense maquilhagens e cabelos arranjados, ou espartilhos (reais ou construídos) destinados a tornar o corpo num objecto mais aprazível. Este amor que veja a beleza dum bigode de leite no lábio, do inchaço dos olhos ao acordar, do cabelo suado e desarranjado depois do sexo, da barriga inchada depois duma refeição exagerada; um amor que encontre no outro a beleza sublime de um sorriso aberto espraiado nos lábios, ou de uns olhos refulgentes de felicidade.
Desejo que façam por correr atrás de um amor que permita o conforto do silêncio partilhado, em que a ausência de palavras não significa que não haja nada para dizer, mas antes seja a certeza dum fluxo de pensamento em deliciosa simbiose, que respira em conjunto. Um amor em que ambos reconhecem a luta que representa mantê-lo nutrido e a florescer estação após estação, e que mesmo assim tenham coragem de o tentar: com as limitações mais absolutas de cada um, com as tão óbvias imperfeições e inconsistências que carregam consigo, mas em que ambos diariamente se superem para o fazer acontecer. Esse amor em que a segurança em si próprio não seja nunca abalada sem que para isso seja necessário enjaularmo-nos em nós mesmos, mas antes que se reforce no desafio de ir continuamente ao encontro do outro, mesmo (e principalmente) quando o nosso mais primitivo instinto egocêntrico nos grita que não é possível dois serem um.
Toda a gente merece um amor que seja rochedo capaz de resistir à erosão da corrida de todos dias, tão impenetrável e inquestionável que as tempestades ocasionais que a todos acometem, não sejam mais que oportunidades para dançar à chuva. Esse amor em que a passagem do tempo não consegue fazer esmorecer a ânsia da carne, não mitigue o frémito de duas almas encerradas em dois corpos que se desejam, nem extinga o fogo que queima de dentro para fora nos momentos em que se abandonam um no outro. Um amor que se der filhos, os seja capaz de nutrir com bons exemplos e capaz de formar pessoas que acrescentam, por oposição a pessoas que parasitam; em que esses filhos não sejam gerados pelo egoísmo de vidas centradas no próprio umbigo, mas sim pelo desejo de fazer do mundo um sítio melhor frequentado.
Gostava que conhecessem um amor que se revista daquele fascínio que só dedicamos às mais elevadas genialidades, quando olhando o outro; em que a rotina dos dias seja preenchida com aprendizagens mútuas onde cada um oferece o que tem e isso se assume fonte inesgotável de sorrisos e gargalhadas. Um amor que seja como o vento debaixo das asas de um pássaro, impelindo os seus vôos sem nunca ambicionar dirigi-los ou comandá-los, e onde as conquistas de cada um sejam celebradas sem invejas ou ressentimentos, mas sim que nos preencham com o orgulho de ver o outro brilhar. Aquele amor em que cada um é livre de ser cada um, com os seus sonhos e os seus medos, sem que nenhum tente ser mais do que o outro e apenas queira ser melhor que si próprio; aqui as mãos servem para impulsionar e amparar, nunca para asfixiar ou pisar.
É bonito ser-se amado assim, posso garantir. Mas é privilégio reservado a muito poucos: só consegue amar assim quem faz por crescer todos os dias, quem despreza a inércia que embala e vai atrás do abismo do desconhecido com a coragem da impulsividade, quem é inteligente a ponto de não se contentar nunca com o conhecimento de hoje. Desejo, qual plácida Miss Universo, que façam por encontrar este amor, cientes de que ele apenas se encontra na construção continuada de muitos acasos, acasos esses que representam sempre a possibilidade de se auto-aperfeiçoarem ou de se conformarem com o que são. Esses acasos são sempre o risco ou a regra, o limbo ou a certeza, o abismo ou o comodismo, a vertigem do medo ou a inércia, a felicidade absoluta ou o “vai-se andando”. Queria mesmo que 2016 trouxesse este ímpeto a muita gente, este nervo e esta coragem, para podermos começar a construir um mundo melhor. Falando com sobriedade, concluo: desejo que percebam que só ama quem tem tomates para amar. 01-01-16