Eu sei que foi recentemente Natal, sei que nestes dias é inaceitável ser-se outra coisa que não ser feliz, sei que se compram presentes às dezenas para preencher o vazio das horas de todos os dias, sei que se come e se bebe como raramente para mitigar as dores que nos assolam os restantes dias do ano, sei que se reúne toda gente para mascarar as ausências da corrida acelerada da rotina. É ver as famílias a reunir à volta da mesa recheada das mais elaboradas iguarias, é ver as crianças a exigir a lista interminável que escreveram ao Pai Natal, é ver mensagens dos mais altos dignatários do nosso País e ver as redes sociais inundadas do mais fútil e vilipendiado dos afectos. Perdoem-me mas mete-me nojo. É tão abertamente hipócrita que me revolteia as entranhas, na medida em que serve apenas para mascarar a profunda infelicidade em que vive a maioria. Porque é que se espera chegar ao Natal e viver momentos mágicos, únicos e inestimáveis, se o que preenche todos os restantes dias do ano é a mais brutal da inércia e da auto-comiseração, da solidão e da incompreensão, do desgaste e do cansaço, do conformismo? É como se ao montar toda uma peça de teatro, e encenando impacientemente os restantes membros do elenco, se pretendesse convencer um público que se aloja teimoso no mais fundo da nossa mente, de que levamos a vida com felicidade e por isso estamos gratos.
Abandonando este nevoeiro de lamúrias alcoolizadas, centremo-nos num único exemplo concreto: vamos pensar nas relações amorosas. Somos educados a achar que devemos procurar o parceiro duma vida, que qualquer relação que acabe no entretanto foi (mais) um falhanço nessa demanda. Depois de achado, somos educados para achar que o devemos manter a qualquer custo, mesmo quando visivelmente se transforma numa relação tóxica. Olhem em volta e digam-me quantos casais conhecem com a coragem de partilhar tudo (desde os anseios mais íntimos, aos devaneios mais imaturos, às fraquezas mais inconfessáveis), que manifestem um profundo respeito um pelo outro (perante a liberdade individual de cada um, e perante as suas escolhas e opções), ou que revelem uma lealdade (e reparem que não disse fidelidade) inabalável pelo outro? Pois, eu também conheço muito poucos. A maioria de nós sobrevive alicerçando a sua existência em citações mal-amanhadas do Facebook, esperando ver nas selfies tiradas naquela viagem (aquela que fizemos contrafeitos, não necessariamente tentando tirar tempo para dois, mas mais a tentar arranjar um argumento que sustente o álibi de futuras discussões), olhares apaixonados que já não existem há anos.
Sobrevivemos à solidão de noites partilhadas no sofá, em que se disputa qual a programação que se vai ver a seguir na televisão (um ganha e o outro desiste e vai para o quarto, também ele com outra televisão, ver o programa que queria inicialmente), em que se tenta encetar uma conversa impossível, uma vez que embate no muro de indiferença que já se instalou entre ambos sem que ninguém reconheça sequer a sua existência. Sobrevivemos ao Natal das aparências, em que nos sentamos com a família que à força de tanto negligenciarmos já não consegue manter nenhum resquício da ligação original, em que desengonçados trocamos presentes frígidos, comprados à pressa num centro comercial apinhado de tantos outros iguais a nós, em que ouvimos as crianças a reclamar de não terem conseguido todas as coisas que pediram, ou a explodir furiosas porque não acertamos no modelo do jogo que queriam, em que nos atordoamos sôfregos com comida e bebida, na esperança de que este vazio se dissipe sem dar demasiado trabalho e sem provocar mais danos nos dias futuros. Sobrevivemos à ressaca depois das festas, em que o amargo das palavras embriagadas nos seca a boca e é tudo o que sobra em nós, as suas facadas e agulhadas latejam em feridas que sentimos em pequenas ondas de choque, essa ressaca que nos faz ver o novo dia sem os filtros da publicidade enganosa, manhã fria e cinzenta em que os gritinhos das crianças são apenas bordoadas lancinantes na dor de cabeça que nos assola.
Quantos de nós passam assim Natal após Natal? As crianças a crescer e parece ser cada vez mais difícil sair deste vórtice de inércia teimosa a que chamamos ser um casal, e preferimos assim viver exilados nas memórias daquilo que um dia foi. Passam-se assim os dias de todos os meses, uma vida que um dia se quis em conjunto bifurca-se em duas vidas paralelas, desenrolando-se ao mesmo tempo e lado a lado, sem que em quase nada se encruzilhem. E aguardamos expectantes pelo Natal (inundados de publicidade que nos adormece o raciocínio para acreditar que este vazio se dilui desde que rodeados de coisas suficientes), época de amor e união, partilha e família. Da mesma maneira que toda a semana esperamos ansiosos o fim-de-semana, todo o mês esperamos o feriado, todo o ano esperamos as férias, toda a vida esperamos a reforma. Vivemos sempre à espera do amanhã em que tudo vai fazer sentido, vai estar completo, quais burros a caminhar atrás da cenoura pendurada na cabeça.
Pareço profundamente cínica, de certeza que não passa de inveja mal disfarçada. Afinal eu sei que devem ter recebido aquela mala da Furla que andam a namorar há tanto, ou então ela ofereceu-vos o último modelo da Rolex demasiado caro para ambicionar, ou então receberam aquela pulseira da Tous que invejaram à vizinha do lado. Eu sei que isso vos inebriou duma felicidade que julgaram ser gratidão. Mas receberam o carinho duma mensagem de Natal sentida num cartão, ou a candura dum elogio sussurrado ao ouvido, o colo duma mão na outra? E afecto, receberam? Foi Natal e proponho que por uma vez ambicionemos ser algo mais que pequenos e ocos. Proponho que se olhe frontalmente e sem enleios para bem dentro de cada um e se faça o que é (devia ser) imprescindível: reconhecer o que nos faz infelizes e mudar, pôr a mexer, sair a correr atrás de genuína felicidade. Mesmo que para isso seja apenas preciso sair do sofá e ir ter com alguém a fazer-nos o jantar. Perdoem-me que foi Natal, e a mim dá-me para o sentimentalismo bacoco.
2015 - 12 - 26
Vidas Úteis
Esta minha semana foi dedicada intensivamente ao ensino da música: foi (e ainda está a ser!) dedicada aos preparativos para os vários concertos que tendencialmente se promovem nesta época festiva. E tive oportunidade para me aperceber de dois fantásticos privilégios que tenho na minha vida: primeiro, de poder conhecer tantas pessoas ainda em formação, e depois por poder ajudar nessa construção através da Arte e da importância que lhe está associada. Num mundo que se move a uma velocidade estonteante e que nos instila, hoje cada vez mais, um sentido de dever tão extremado que é capaz de obliterar todos os demais propósitos da nossa existência, poder fruir da Beleza em estado puro assume-se claramente como um autêntico privilégio. Mas não o devia ser: devia ser a regra, não a excepção. Debrucemo-nos intensivamente sobre o conceito de vidas úteis: disse o conhecido economista checo Tomás Sedlácek que “não estamos aqui para viver vidas úteis, mas vidas belas.” Parece bonito, mas aquele bonito que reservamos às utopias que sabemos não ser concretizáveis.
Em Portugal é tristemente comum vivermos com o permanente sentimento de culpa por não estarmos a cumprir na íntegra tudo aquilo que de nós é esperado no universo laboral. Fica sempre alguma coisa por fazer, e a culpa é nossa porque fomos nós que em dado momento não nos esforçamos tanto como devíamos, não cumprimos o nosso propósito no seio da empresa. E, tal como às peças das máquinas que deixam de funcionar, enfrentamos o constante receio de ser substituídos por um novo modelo mais eficaz. Bem vistas coisas, só interessamos quando temos uma utilidade claramente perceptível, muito bem direccionada. Na génese, este conceito parece-me completamente aberrante: retira-nos toda a nossa Humanidade, cria inseguranças, medos e instila a comportamentos cada vez mais irascíveis e agressivos, retira-nos toda e qualquer sensibilidade, tornando-nos em pessoas imunes à empatia e ao afecto (sim, porque não se iludam ao pensar que estes comportamentos se conseguem circunscrever ao universo profissional), enfim, drena-nos o tempo que devíamos ter para nos dedicarmos a viver.
Eu sei que na actualidade é quase tabu falar-se disto, mas vou dizê-lo na mesa: a vida não serve só para trabalhar. Trabalhar, como meio de encontrar uma forma de subsistência e como forma de realização pessoal no atingir dos nossos objectivos (nossos, não os que nos impõem) é desde sempre um dos pilares da sociedade. Mas assistimos hoje a uma forma de encarar o trabalho que extrapola largamente este âmbito: assistimos ao que se assume como um verdadeiro flagelo mundial, em que as pessoas só pensam em trabalho, ainda por cima com um sentido profundamente pejorativo a ele associado, e que por isso não têm tempo. Numa era cada vez mais tecnológica, somos meros robôs: acordamos de manhã, levamos as crianças às escolas que os vão tornar em outros modelos robóticos cada vez mais eficazes, enfiámo-nos no escritório 8h pelo menos a gerir os conflitos dos outros e a resolver problemas que muitas vezes não são nossos, mas que nos ordenam que são nossos de resolver, chegamos a casa para alimentar e deitar as crianças, tão exaustas como nós, e acabamos por sucumbir ao cansaço crónico que nos assola o corpo e a alma sem que nos demos conta da devastação que provoca (não sem antes terminarmos o que ficou por fazes nas 8h que gastamos no escritório). E amanhã, fazemos tudo igual. Vivemos à espera do feriado, do fim-de-semana, das férias, das promoções que vão permitir ganhar mais dinheiro a trabalhar menos tempo, mas que por alguma razão não parecem chegar.
Somos robôs, somos ocos, e porquê? Porque nos roubam o tempo, enlaçando nas teias de mentiras que perpetuam a ideia de que mais tempo de trabalho = mais dinheiro = mais prazer. E sem tempo, deixamos de apreciar a Beleza, tornamo-nos imunes a ela e deixamos de viver. Eu sei que esta ideia parece muito rebuscada, mas só é assim porque o processo de formatação de décadas que temos em nós profundamente entranhado se encarrega de a revestir com as cores da estranheza, do irreal. Se decidirmos usurpar o tempo que nos roubam e parar para observar o que nos rodeia, facilmente começamos a perder os diferentes filtros que nos foram impostos e começamos a ver a realidade com outras tonalidades. Ou isso, ou passamos a contactar diariamente com crianças, como eu, e procuramos ver o mundo pelos seus olhos: garanto que é bem eficaz.
Pensemos a nível micro: nós, portugueses, somos todos uns grandes mandriões, mas bem vistas as coisas trabalhamos sempre a mais do que aquilo que nos é pedido. É a regra escondida nas entrelinhas, ninguém nos obriga a isso contratualmente mas o colega sai 1h mais tarde todos os dias, a colega vem sempre meia hora mais cedo, todos vêm ao fim-de-semana se for preciso... Em contrapartida, há várias empresas na Europa a restringir o envio de emails profissionais após as 17h. Somos uma data de preguiçosos, mas desempenhamos as nossas funções com brio (os funcionários públicos não, que todos sabem que são uns mal-encarados empedernidos à espera da reforma!), que é como quem diz, trabalhamos até que o trabalho fique bem feito, implique as horas que implicar... Por outro lado, os países do Norte da Europa, os mais produtivos (!), trabalham uma média de 6h diárias.
Ora isto não é muito coerente, quer-me parecer. O que me parece óbvio é que vivemos à sombra de um incumprimento que nos venderam ser quase genético, uma característica alienável da nossa alma lusitana, tão nossa como o “deixa andar”. E sim, vender é a palavra certa, porque afinal pagámo-lo muito caro. Dizem-nos que não somos bons profissionais, principalmente quando comparados com as pessoas das grandes potências europeias, e entranha-se assim bem fundo em nós um sentido de dever deturpado, na medida em que a balança está continuamente desequilibrada para o nosso lado. Façamos o que fizermos, nunca é o bastante e estamos sempre em falta. Isto não é verdade, e o tal preço alto que pagamos é mesmo a nossa alma, a nossa existência, como lhe preferirem chamar. Perdemos anos de vida com a quantidade de horas diária que nos dizem que devemos trabalhar, assim como com o stress que trazemos do universo laboral para o universo pessoal.
Talvez esta ideia seja apenas sentimentalismo bacoco próprio da época natalícia, mas perguntem-se quantos anúncios publicitários costumam ver por esta altura a reforçar a ideia de que o maior presente de Natal é poder oferecer tempo àqueles que amamos. Toda a gente se comove com isto, toda a gente proclama Carpem Diem! Agora, perguntemo-nos quanto ao que fazemos diariamente para poder oferecer continuamente a nós mesmos e aos que nos rodeiam esse tempo. Assustador, não? Está a chegar ao Natal e lanço um desafio: paremos todos um bocadinho, um dias ou dois, para pensar na nossa real utilidade/propósito na vida e depois retomamos tudo a partir dessa premissa. Tenho a certeza que as utopias vão parecer cada vez mais perto, cada vez mais concretizáveis.
2015 - 12 - 18
Ensino Artístico Especializado em Portugal: a extinção.
Acredito que uma grande fatia da população portuguesa desconhece que existe no seu país um ensino artístico especializado e que por conseguinte desconhece também o serviço público que proporciona às crianças em formação e as condições pelas quais se rege. Para que possa com legitimidade denunciar e criticar o que me parece ser escandaloso, parece-me justo que dedique primeiro algum tempo em esclarecimentos breves.
Ora então: neste momento este tipo de ensino, que abarca as áreas da música e da dança, é ministrado quer nos conservatórios públicos, quer nas academias privadas. No entanto, embora a regulamentação seja a mesma para ambas as tipologias de ensino – público e privado – existem grandes discrepâncias em relação aos produtos oferecidos (e sim, a troca da expressão “serviço” pela expressão “produtos” é inteiramente intencional), principalmente pelas diferenças relacionadas com o financiamento. O ensino público funciona à semelhança do ensino público regular, enquanto que o ensino particular tem sofrido acentuadas mudanças nos últimos 10 anos, sensivelmente. Umas para melhor, outras não tanto, mas a instabilidade no sector é mais que óbvia. Não vos vou maçar com as vantagens amplamente divulgadas do ensino artístico na formação académica das crianças, nem as especificamente relacionadas com a aprendizagem de um instrumento. O que me interessa realçar é que estas escolas, não só as públicas mas também (e acrescento, principalmente) as privadas estão a providenciar um acesso democratizado a este tipo de ensino, através de um programa conhecido por o regime articulado, que consiste num curso de no mínimo 5 anos (correspondente ao ensino básico – 5º ao 9º ano) e num máximo de 8 anos (correspondendo a conclusão da escolaridade obrigatória e possível ingresso no ensino superior na área). E fala-se em acesso democrático porque pela primeira vez desde que surgiu este ensino há dois séculos, este está isento de pagamento de propinas, que tendo em conta que assenta num modelo de ensino/aprendizagem individualizado, não é propriamente barato.
Portanto, é um ensino caro e que custa zero para os seus alunos, mesmo que matriculados em escolas privadas. Que coisa estranha, não concordam? Consequentemente, o seu financiamento assenta exclusivamente em verbas do Estado, contempladas no seu Orçamento anual. Em 2011, alguém achou que esta oferta não seria justificativa o bastante para fazer parte do Orçamento de Estado. A fatia amplamente absorvente neste Orçamento não era comportável por uma economia em recessão e em grande instabilidade. Mas também não se pode simplesmente encerrar um programa à partida tão vantajoso, que isso cai mal ao eleitorado. Assim, em 2011 o financiamento para o ensino artístico especializado foi transferido para os fundos comunitários europeus, concretamente para um programa chamado POPH - Programa Operacional para o Potencial Humano (uma sigla certamente irónica), posteriormente POCH (que por acaso ainda não pagou o correspondente ao final do ano passado). Este programa já era utilizado para financiar o ensino profissional, também na vertente artística, e julgou-se levianamente que com alguns ajustes facilmente se enquadraria na realidade já descrita.
Nunca funcionou, e esse ajustamento nunca aconteceu. Em primeiro lugar, criou uma cisão no país, ao financiar o mesmo tipo de ensino segundo normas diferentes (as escolas das zonas da grande Lisboa e do Algarve, com um PIB acima dos índices – baixos – da zona de convergência, continuaram a ser financiadas através do Orçamento de Estado). Em segundo lugar, obrigou dezenas de escolas a tomar medidas verdadeiramente degradantes para o sector, coagindo-as inclusive a ir contra aquilo que são as regulamentações deste ensino e as normas laborais para poder fazer face às exigências surreais da entidade financiadora (ilustro: o Contrato Colectivo de Trabalho prevê 14 meses de vencimento – o salário efectivo do professor mais os dois subsídios que recebe qualquer trabalhador em Portugal – mas este POPH só financiava as horas de formação efectivamente ministrada, ou seja, 36 semanas de aulas – nem os meses de férias dos alunos, nem os períodos de interrupção lectiva – o que equivale, na práctica, a um regime laboral de recibos verdes). Em terceiro e último lugar, ao mudar o modelo de financiamento (ao invés de custo/aluno passou-se para custo/hora de formação) deturpou completamente a forma de funcionamento de todo este ensino e obrigou as escolas a gerir um financiamento quase dois terços inferior e, (sentem-se que esta é verdadeiramente hilariante) todo o sistema estava pensado num formato de reembolso, ou seja, unicamente após a despesa feita, sendo que era esta era passível de retificação durante ainda alguns anos! Creio que não é necessário entrar em explicações mais detalhadas para que se perceba o quão irrealista foi este cenário nos seus anos de vigência.
Por tudo isto, rejubilei quando se soube que o financiamento a estas escolas voltaria a estar a cargo do MEC, acreditando que agora sim, teríamos as condições de justiça e valorização necessárias para continuar a fazer o excelente trabalho que tem vindo a ser desenvolvido (perdoem-me, que sou um bocadinho ingénua). Por muito optimista que me considere, existiram sinais inequívocos de que este bando de escroques (eu sei que isto é o Pimenta na Língua mas não convém começar já a ser malcriada) que nos governam são apenas gente de má índole, mau carácter, sem valores e sem princípios, quiçá até um pouco sádicos: fizeram sair a portaria que regula as condições de acesso ao novo financiamento no final do mês de Julho, portaria essa onde se concretizavam alguns dos receios das escolas no que toca a valores de financiamento mais baixos, numa altura que já se realizaram provas de acesso, já se estabeleceram parcerias com as escolas de ensino regular, já se formaram turmas... enfim, já se “montou” o próximo ano lectivo, coisa pouca certamente. Por outro lado, introduziram condições de acesso ao financiamento completamente despudoradas, em que o número de alunos financiados por zona desceu drasticamente por todo o território. Existiu uma comissão (composta por?) que avaliou cada escola candidata para decidir se esta merece receber financiamento e se sim, em que número, recorrendo a critérios muito específicos (estabelecidos por quem?). Estes critérios de avaliação são simplesmente ridículos, claramente fabricados para servir os interesses de alguns "patrões" na nossa área, escolas que em vez de usar o seu poderio para mudar de facto a situação, pretendem apenas lucrar com isso. Piada das piadas: o ano começava o mais tardar a 21 de Setembro e só depois, a 12 de Outubro (já depois das eleições, que coincidência tão engraçada – o prazo inicial era 28 de Setembro) é que as escolas souberam o seu financiamento definitivo.
Até hoje, já com as listas definitivas publicados, inclusive de um concurso extraordinário para um financiamento extra (que surgiu perante a indignação de grande maioria das escolas do sector perante os valores de financiamento substancialmente mais baixos), e apesar de ter mudado o governo, a maioria das escolas ainda não se recebeu quaisquer verbas do financiamento previsto. Há professores com salários em atraso deste Maio/Junho do ano passado (porque como disse, também o POCH se “atrasou” no pagamento das verbas em falta). Conseguem imaginar o que é? Trabalhar todos os dias (sim, porque muitas das direcções das escolas impedem activamente os seus professores de cessarem o seu contrato de trabalho – direito previsto na lei quando há salários em atraso correspondentes a 2 meses – para pelo menos receber um subsídio de desemprego) e não receber qualquer vencimento?
Tudo isto serve apenas para denunciar com propriedade que o EAE está neste momento a ser vítima de um plano maquiavélico que tem em vista a sua extinção. Isto não é uma questão de opinião, de interpretação: são factos, e já muitos o disseram antes de mim. Trata-se claramente duma ideologia política que pretende embrutecer toda uma geração, tornar as crianças cada vez menos cultas, menos curiosas, menos críticas, mais amestradas, mais controladas, mais burras. Não só através deste lento estrangular do EAE, mas principalmente ao fazer renascer um paradigma de educação que se julgava já ultrapassado: a única coisa que importa é a inteligência lógico-matemática, o modelo transmissivo é de facto verdadeiramente eficaz, e todas as demais disciplinas do currículo são secundárias, em que as disciplinas de componente artística são, evidentemente, uma perda de tempo (e um sorvedouro de dinheiro público). No entanto, como encerrar um programa de democratização do acesso ao ensino artístico, que para mal dos pecados do MEC teima em dar resultados (dezenas de jovens músicos reconhecidos fora de portas, índices de melhores resultados em todos os exames nacionais), que teima em não seguir a direcção apontada para o sector da Educação ao estimular o pensamento crítico, o pensamento abstracto, a curiosidade natural das crianças, a articulação entre conceitos distintos espaçados temporalmente, enfim, tudo aquilo que o ensino regular está agora impedido de fazer?!
Simples: vai-se lentamente asfixiando o sector, usando das manobras aqui descritas (e que causaram e continuam a causar que existam no nosso país professores com salários em atraso correspondentes a 7 meses!), fazendo com que as escolas comecem uma por uma a fechar e resolve-se o problema. É pérfido, não concordam? E porquê, então?, irão certamente questionar os mais cépticos. Porque eleitores mais burros, são mais fáceis de manipular. E porque pessoas sem cultura, sem sensibilidade, são pessoas muito menos perigosas, muito mais inertes. Só por isso. Ora então, qual é o meu objectivo com este artigo? Senhores, mudou o governo. Mudem-se então as vontades, mudem-se então as ideias, mudem-se então as atitudes. 2015 - 12 - 11
Queremos a eliminação da violência de género: será?
Comemorou-se no passado dia 25 de Novembro o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, uma comemoração que se prolonga já desde 1999 (se as minhas fontes não estão erradas). Esta é, desde já há muito tempo, uma luta com que me identifico profundamente, e agora afigurou-se-me pertinente discutir duas premissas essenciais em que assenta esta batalha (ainda) tão desigual. Atentemos na denominação: reparem que não mais se luta apenas contra a violência doméstica (cuja própria designação parece induzir em erro, remetendo para um universo particular, “doméstico”, onde tudo é privado e que não deve por isso ser remexido), o que a mim me diz que já há 16 anos se reconhece que a violência de género assume muitas formas e feitios e que todas (TODAS!) devem e podem ser combatidas. Por outro lado, falamos em eliminação: apoiam-se as vítimas, previnem-se possíveis ocorrências futuras, denunciam-se situações presentes, tudo isto é certo. Mas a batalha centra-se, e hoje talvez mais que nunca, na completa erradicação de comportamentos violentos contra a mulher. Basicamente, a diferença reside em que o que agora se pretende é curar esta doença, por oposição a apenas tratar os seus sintomas, como até recentemente. Portanto esta luta é para obliterar (não minimizar, não abrandar) toda a violência exercida sobre as mulheres (não apenas a violência doméstica). É precisamente sobre esta nova e fresca perspectiva que vos quero falar; reconheço o sem-número de iniciativas que têm sido levadas a cabo ao longo dos anos para contribuir para o total desaparecimento de violência contra as mulheres, da mesma forma que reconheço o ressurgir na opinião pública dum feminismo mais justo, mais assente na igualdade de género e partilhado tanto por mulheres como por homens, que recorrentemente tem contribuído para um real e significativo enfoque nesta questão. Reconheço também a vasta quantidade de instituições (estatais e não estatais) que se aliaram nesta luta e as medidas governativas que as têm vindo a apoiar. Há no entanto uma lacuna: será que estamos a educar as nossas crianças para contribuir para esta erradicação? Estamos a educar os rapazes para saber respeitar uma rapariga como um igual? Estamos a educar as raparigas para saber reconhecer comportamentos violentos e saber reagir a eles assertivamente? Eu creio que não. Tudo o que vejo diariamente, ainda para mais tendo em conta que trabalho regularmente com crianças e jovens, assim como me apoio na minha própria experiência pessoal (tenham em conta que cresci como uma adolescente loira, de olhos claros e bastante desenvolvida para a minha idade, por favor) nega categoricamente que as nossas crianças estejam a ser educadas para ser parte activa nesta luta. O contexto que as circunda hoje é tão intricado, uma teia tão brilhantemente tecida por um conjunto tão mais vasto de factores, que se torna difícil colocar o dedo na ferida, circunscrevê-la, para tentar assim trata-la conveniente. Trocando por miúdos, é extraordinariamente difícil perceber o que, em cada um dos nossos quotidianos, colabora para que estes comportamentos tão mediaticamente repudiados continuem a ocorrer. Talvez correndo o risco de ser algo arrogante, uma vez que não tenho nem nunca tive a pretensão de investigar estas questões, consigo diagnosticar três grandes factores que, ainda que de forma inconsciente ou irreflectida, perpetuam a ideia de que só existe violência contra as mulheres se lhes “levantarmos a mão”.
COMUNICAÇÃO SOCIAL Continuamos a ver, numa base quase diária, ideias difundidas nos media que poderão ser nocivas à construção duma sociedade igualitária, sem diferença de género, e que podem inclusive, fomentar conceitos de interação misóginos, paternalistas e agressivos. Falemos de exemplos concretos: recentemente tivemos um spot promocional da RTP acerca da cobertura das comemorações da República, em que o busto da República é submetido a vários piropos elogiando-lhe a boa forma física. Parece inofensivo, inócuo, não parece? Mas não é, porque é representativo de algo muito maior: se vemos passar num canal público de televisão a ideia de que é simpático, bem-humorado até, “elogiar” as mulheres que por nós passam na rua, que mensagem estamos de facto a transmitir? Eu digo-vos: estamos a transmitir a ideia de que é legítimo uma mulher ir na rua e ouvir: “boa tranca, boa prateleira... só é pena é essa cara”. Ou então, em casos mais extremos: “montava-te o dia todo”. Ainda não conseguem ver maldade? Ora então, abre também a porta para que alguém, alguém se calhar mais bronco, mais agressivo e globalmente mais estúpido, se ache no direito de tentar agarrar essa mulher à força, em vez de se ficar apenas por uns piropos mais badalhocos. Agora imaginem: essa mulher era a vossa mãe, ou então a vossa mulher, ou pior, era a vossa filha de 14 anos. E agora, parece inofensivo? É impensável alguém, homem ou mulher, menino ou menina, sentir que não pode andar na rua vestido como quer, porque pode estar sujeito a ouvir comentários inadequados e ordinários. É impensável, num país que se quer civilizado, eu com os meus 16 anos sentir necessidade de andar na rua sempre de headphones nos ouvidos para conseguir não ouvir e assim ignorar este tipo de comentários. Agora falo de piropos, mas permitindo-se isso (e não falo de banir legalmente o piropo, como houve quem tentasse, falo de ser socialmente aceitável), permite-se também, numa última instância, que as jovens meninas desenvolvam uma noção ERRADA de que é permitido serem assim comentadas, como se de um pedaço de carne se tratassem, e que até acabem por considerar esse tipo de ofensas como elogios! Para mim, que fui desde cedo habituada a responder a isto de forma igualmente agressiva e taxativa (sempre para grande surpresa dos muitos broncos que me rodeiam o quotidiano), permitir isto é completamente inaceitável e voltando ao cerne da questão, enquanto os meios de comunicação social perpetuarem este e outros comportamentos, estamos a ser coniventes com esta deficiente formação cívica prestadas às crianças e jovens. Meus senhores, não é introduzindo a temática da violência doméstica nas novelas que isto lá vai! É simples: retratem se faz favor um mundo se calhar utópico, em que as mulheres das novelas não precisem de se deitar com o patrão para terem uma promoção na empresa, em que não haja tempo de antena para comentadores completamente misóginos a cheirar a bafio, em que não representem a mulher como um ser frágil que não se sabe defender, em que não obriguem as vossas jornalistas e actrizes a corresponder a um ideal corporal completamente errado e quase desumano. Por exemplo. Para começar, talvez baste não permitir promos em que o busto da República é “elogiado” no parlamento como uma coxa de frango no talho.
INTERACÇÃO SOCIAL NO CONTEXTO ESCOLAR É na escola que actualmente as nossas crianças passam mais tempo. E é também aí que adquirem comprovadamente a maior parte das competências sociais que as vão moldar como jovens adultos. Por esse motivo, devíamos estar preocupados com o tipo de mensagens que são aí ensinadas às crianças, não aquelas transmitidas pelas vias institucionais, mas pelas que se perpetuam nos corredores na corrida dos dias. É importante questionarmo-nos se estamos a ensinar as nossas meninas a responder de forma adequada quer aos comentários maliciosos tecidos pelos colegas, quer aos tão recorrentes “apalpanços”, da mesma forma que se assume importar questionar se estamos a ensinar os meninos a saber respeitar o espaço individual de cada um. É comum ver-se meninos a excluir meninas de algumas brincadeiras por serem “de meninos”, e vice-versa. É comum verem-se meninas a ser apalpadas de forma umas vezes sorrateira, outras vezes abertamente indecentes. É comum ouvirem-se insultos entre géneros, rotulando raparigas de “putas”, “vacas”, “cabras” (entre outros, bem mais inventivos) por algum comportamento de que se possa não gostar (e é entre meninas que isto mais escandaliza, mas que se assume normal!). É comum assistir-se a uma exploração da sexualidade muitas vezes precoce, motivadas por coação da parte dos restantes colegas. É comum assistir-se a tentativas declaradas de chantagem, ameaçando-se a divulgação de vídeos pseudo-pornográficos na falha da continuidade de favores sexuais. É comum ver-se as crianças e os jovens cada vez mais sexualizados, sem que continuem a saber lidar com essa sexualidade de forma mais actualizada. É comum assistir-se a uma educação sexual completamente inadequada, orientada quase exclusivamente para a componente fisiológica da questão, sem que se pense também em educar para os afectos. Tudo isto é comum, e por isso incorremos no erro de o considerar normal. Representa a regra sim, lamentavelmente, mas devíamos estar a fazer tudo ao nosso alcance para que não seja considerado normal, para que estes comportamentos sejam considerados as aberrações que representam! Se queremos que as nossas jovens mulheres saibam reconhecer o que é uma relação abusiva, temos que lhes dar ferramentas para isso, temos que lhes ensinar o que representa de facto estar numa relação e o que traduz um supremo abuso de confiança e um abuso continuado (seja ele físico ou psicológico). Se é na escola que as nossas crianças passam mais tempo, a escola tem de estar ciente destes problemas e dos riscos que lhes estão inerentes e tem de actuar preventivamente, não continuar a agir apenas depois do mal já estar feito e sempre de forma medíocre. Os pais também não podem ser excluídos da equação, naturalmente: uma criança precisa de vir ensinada de casa a como reagir a uma situação destas e essa reação tem de ser taxativa. Bem sei que não sou nada imparcial para o estar a dizer: afinal, a mim ensinaram-me que ninguém me podia tocar a não ser que eu o quisesse, e que se alguém o ousasse fazer sem o meu consentimento, estaria eu autorizada a repudiar fisicamente e imediatamente o infractor (vá, o belo do pontapé vocês sabem onde). Parece extremo, mas essa pode ser, num cenário também ele extremo da vossa filha ser forçada pelo namorado a iniciar uma práctica sexual que não deseja nem consente, a diferença em educar ou não a vossa filha para ser uma vítima. Da parte das escolas, exige-se em primeiro lugar um reconhecimento destes problemas, em vez de continuarem a olhar para o lado, e em segundo lugar que disponibilizem ferramentas que permitam a erradicação do problema na raiz.
EDUCAÇÃO PARENTAL Por último, mas talvez o mais importante factor dos três que me propus a enumerar, o modelo de interação social entre um homem e uma mulher que as crianças recebem em casa, através do que observam nos pais, assume-se um dos maiores orientadores do seu comportamento futuro. Um filho que veja o pai a tratar a mãe com condescendência ou coisas piores, naturalmente irá tratar da mesma forma uma namorada. Uma filha que assista a uma atitude constantemente servil da mãe para o pai, vai achar normal que um marido se recuse a ajudá-la nas lides domésticas ou que se ache no direito de fazer exigências. Um filho que assista ao pai constantemente a menosprezar a opinião da mãe, naturalmente vai crescer a achar que a opinião das mulheres não é importante ou significativa. Uma filha que veja a sua mãe a aguentar, ano após ano, maus-tratos do pai, vai achar que também o deve fazer quando tiver um marido mais irascível, que por vezes se excede e até lhe assenta uma bofetada. Um filho ou filha que veja nos pais um modelo de casal em que não há frontalidade, honestidade, respeito, igualdade e afecto, mas onde sobre ciúmes e desconfiança, discussões violentas e rancores acumulados, vai procurar (ainda que sem o saber) uma relação idêntica, perpetuando assim um ciclo de violência inegável. Como pais temos mesmo de nos começar a responsabilizar pelos filhos que lançamos no mundo, percebendo que o nosso exemplo é o que eles levam consigo a vida toda. Não podemos esperar que os nossos filhos reajam da forma que consideramos certa a situações de desigualdade ou violência de género, se em casa transmitimos mensagens diferentes pela forma como tratamos o nosso parceiro(a), ou na forma como nos deixamos tratar por ele(a). Uma criança precisa de ver nos pais duas pessoas que se respeitem, que se tratem como iguais e no caso de serem um casal (sim, porque mesmo não o sendo é possível que a igualdade e o respeito sejam as bases da interação, embora muita gente se pareça esquecer disso), precisa de ver afectos, precisa de perceber de que forma é aceitável ou não que um homem manifeste afeição por uma mulher, ou vice-versa. Temos de encarar frontalmente que se queremos mesmo erradicar a violência contra as mulheres temos de, primeiro, ensinar a todas as crianças que ela não é normal por ser a regra, mas é sim uma aberração, uma barbaridade e uma atrocidade a ser denunciada imediatamente. Segundo, temos de ensinar todas as crianças a como reagir perante este tipo de abusos, recorrendo a todas as ferramentas ao nosso dispôr e de forma igualmente assertiva. Por último, temos de reflectir cuidadosamente sobre o exemplo que estamos a passar e ajustar o que necessitar de ajustamento. A violência de género só vai desaparecer no dia em o queiramos, a verdade é mesmo essa. E é de casa, do nosso quotidiano e daquilo que somos todos os dias, que surgem as nossas vontades e de onde parte realmente a verdadeira mudança.
2015 - 12 - 04
Subserviência: a revolta de uma inconformada
Neste artigo que é em simultâneo a estreia deste espaço, o que me pede esta minha língua ácida é que comece com estouro, que entre de passadeira vermelha. Que é como quem diz, que escreva sem filtros sobre um tema pertinente, claro, mas que essencialmente me seja genuíno. Escolhi falar sobre a subserviência, esse modus operandi comum no português. Vivemos num mundo invertido, onde se deturpam princípios e valores em prol do benefício próprio. Sempre pudemos observar isso naqueles que legitimamos para nos governar, e na sociedade portuguesa isso sempre foi notório. De há uns anos para cá estalou-se o verniz e perdeu-se a vergonha, pois deixou de ser notório e passou a ser a regra. O que simultaneamente me entristece e enraivece não é isso. Eu já não espero que aqueles que detêm as cordas das marionetas sejam bem-intencionados, ou íntegros ou profissionais. Nem honestos, vejam bem. O que não esperava era ser invadida por tamanha desilusão, com tanto ainda para viver (porque dizem que a desilusão é coisa de velho, de reformado), ao perceber que o problema já se entranhou nas pessoas, essas massas (cada vez mais) disformes que compõem a nossa sociedade em decadência. Fomos de tal forma influenciados e manipulados, que vivemos hoje numa espécie de delírio alucinado em que acreditamos ser pessoas de valor e mérito enquanto agimos de forma execrável, tudo porque a sociedade nos diz que é “necessário”, é “normal”. Numa sociedade profundamente religiosa como o é a portuguesa, o deus-menino adorado actualmente é o dinheiro. E o mais curioso é que adoramos o dinheiro pela falta dele, na medida que usamos isso para justificar atitudes que noutro contexto seriam classificadas de completamente despudoradas e desenvergonhadas, tanto no universo laboral como pessoal. Falando exclusivamente do primeiro, e especificamente na área da Educação, aquilo a que hoje assistimos é à transformação do espaço “escola” no espaço “empresa”, e consequentemente a mais exploração dos professores e mais estupidificação dos alunos. Um professor já não proporciona um serviço público inestimável e insubstituível, vende um produto (ou vários). E esta é para mim a génese de todos os problemas, na medida em que se deturpa o objectivo primordial de um dos maiores pilares da sociedade. Pior, não acho que isto seja descuido ou irreflexão: tenho uma certeza inabalável de que é premeditado e cuidadosamente planeado pelos poucos que detêm o verdadeiro poder, ou seja, aqueles poucos incrivelmente ricos que assim pretendem não ser afrontados ou ameaçados. Nestes tempos em que todos somos tratados como criminosos pelo nosso próprio governo, afronta-me visceralmente perceber que são agora as nossas escolas que nos começaram a tratar a todos nós professores como indigentes. Já não é só o Ministério da Educação que se encarrega de divulgar a ideia de que o professor é sobrevalorizado na nossa sociedade e trabalha pouco para o salário que aufere (ainda para mais têm 3 meses de férias, os malandros!). O que é aterrador verificar é que essa campanha incessante dos últimos anos SURTIU EFEITO. Surge agora de dentro do próprio sector um movimento conivente com esta linha de pensamento (notoriamente acentuado no ensino particular, pois claro), que não só não combate esta ideologia como trata de a pintar com as cores da normalidade. Passo a citar alguns argumentos ilustrativos: - “Os professores têm de perceber que há uma componente não-lectiva do seu trabalho: essa componente pode ser concretizada da forma que mais interessar à escola.” (mesmo que seja em actividades como a vigilância e transporte de alunos – retirando assim postos de trabalho aos auxiliares de educação – ou com a manutenção do edifício – vulgo, limpar as instalações – mesmo que isto entre em confronto directo com o código deontológico da profissão, mesmo que os interesses da escola possam não contemplar os interesses do ensino) - “Os professores não podem encarar o registo de hora de entrada/saída como uma medida de monotorização mas sim como medida necessária para balizar as suas horas de trabalho.” (mesmo que as horas de trabalho de um professor excedam o limite do mensurável, facto que é muito conveniente obliterar, mesmo que para o efeito já escrevam sumários das aulas que se dão, mesmo que isso relembre procedimentos aplicados em empresas, ou vá, em fábricas, perdoem-me a analogia nada subtil, mesmo que isso sirva não como melhoria do seu trabalho mas sim como ferramenta de coação) - “Os professores têm que defender os interesses da entidade patronal, mesmo que não concordem, pois é o que lhes obriga a ética profissional.” (mesmo que o mesmo código de ética não seja seguido pelas entidades patronais, mesmo que essa ideia de um “patrão” na Educação seja uma falácia muito pobre mas bem-sucedida única e exclusivamente pela a exaustão de décadas a “levar com ela”, mesmo que esses interesses exijam “contornar” ligeiramente as regulamentações laborais e do próprio ensino) É aterrador verificar que quase ninguém escapa a isto; a campanha de desinformação é tão grande e tão bem montada que todos somos formatados de forma eficaz para acreditar que se assume necessário mudar a forma como trabalhamos, não só na Educação mas em todas as áreas. Afinal não somos todos uns mandriões que gostam é de viver à custa de subsídios?! Que estamos presentemente num buraco porque andamos anos a viver “acima das nossas possibilidades”?! Eu creio que não, mas eu sou só o produto duma geração de jovens mal formados, egocêntricos, preguiçosos e mais preocupados com o que se passa no Facebook. Adiante, o que é verdadeiramente triste, aquilo que mói realmente a alma de profissionais íntegros, dedicados e frontais até à exaustão - e felizmente existem muitos - é que na Educação esta postura assume-se muito, mas muito, mais perigosa: estamos a formar crianças. Estamos a desenvolver aquela que vai ser a próxima geração, e se isso por si só não é argumento suficiente para os mais cépticos, pensem que é essa a geração que vai estar a trabalhar para vos garantir a reforma. Esta campanha para estupidificar e embrutecer toda uma geração está em curso, está a funcionar, e somos nós que todos os dias a perpetuamos. Vemos isso nas nossas escolas, em pequenas mudanças que vão surgindo "por necessidade financeira", num refrear mais insistente e mais temeroso da nossa própria opinião face à “autoridade”. Invariavelmente, os períodos de crise económica sempre serviram para alguns se conseguirem enriquecer, criando-se oportunidades de implementar medidas para canalizar o pouco (dinheiro) que sobra apenas para alguns, bem como para perpetuar todo um ciclo de obediência cega a um "poder" normalmente injustificado, sem legitimidade ou mérito e altamente tacanho. No entanto, se fizermos uma análise historicamente informada também facilmente comprovamos que é nos períodos de crise que o ser humano se supera e através de atitudes que o poder estabelecido considera “fracturantes”, consegue de facto impulsionar a mudança. É a isso que me proponho diariamente quando me lanço (aos leões) ao trabalho, e é isso que aqui vos proponho. Como? DIGAM NÃO. Este ano, regressei ao trabalho com uma motivação bastante diferente, mas ainda assim crente de que é possível não perder a nossa identidade face à lama em que todos nos movemos. Basta que digamos não:
não ao lento mas inexorável abandonar dos princípios que nos regem enquanto indivíduos;
não à premissa de que "é uma sorte ter emprego" quando o nosso mérito se assume indiscutível;
não à injustiça dos favoritismos e da desigualdade;
não à contínua exploração do professor;
não à monitorização insidiosa exclusivamente burocrática do seu trabalho;
não à censura;
não a este fascismo disfarçado de democracia que prolifera na Educação;
não a este movimento para o embrutecimento de toda uma geração;
não à subserviência cega, surda e muda.
A partir de amanhã, DIGAM NÃO. (mas de forma educada, polida, quiçá bem disfarçada, senão ainda vos despedem)